Mundo

Recadastramento das autoridades tradicionais, um assunto de quem quase ninguém fala mas devia

Eis o que escreveu o historiador português, Diogo Ramada Curto, para o Contacto, um jornal das comunidades portugueses, sediado no Luxemburgo.

No discurso da abertura da V Legislatura de 15 de Outubro último, o presidente de Angola João Lourenço indicou ser necessário proceder ao recadastramento das autoridades tradicionais em Angola. O principal objectivo consiste em extinguir a proliferação de supostos detentores do poder tradicional nas comunidades. A notícia foi dada pelo Novo Jornal de Luanda de 19 de Outubro. Pelo menos esta é a minha fonte.

Carolina Cerqueira, presidente da Assembleia Nacional, já recebeu os soberanos do Alto Zambeze e Bundas, Mwene Mbandu IV e Rainha Nhakatolo, autoridades tradicionais da província do Moxico, bem como Muana Uta Kabamba, rei dos Bayaka na província do Uíge, município do Kimbele.

O governo de Angola gasta, actualmente por mês, 9.6 mil milhões de Kwanzas, em subsídios atribuídos a 40.075 autoridades tradicionais. Na opinião do sociólogo Domingos Sabral Biz, citado pelo mesmo jornal: “Em função dos subsídios que dão, toda a gente quer ser autoridade tradicional. É preciso que o Governo trabalhe seriamente com as comunidades para serem identificadas as verdadeiras autoridades tradicionais de linhagem”. Segundo o mesmo sociólogo: “As próprias comunidades conhecem quem é a verdadeira autoridade tradicional de linhagem”.

Uma notícia desta natureza traz para o quadro pós-colonial da actualidade, a questão das relações entre, por um lado, o Estado e os municípios – com as suas funções e serviços administrativos, militares e fiscais, a sua rede de ensino e postos médicos, as suas infraestruturas de comunicação e fornecimento de energia – ; e, por outro lado, as denominadas autoridades tradicionais. Em tempos anteriores à independência, o Estado colonial recorreu aos que denominava como chefes tribais, sobas ou sobetas, como intermediários em duas funções específicas. Primeiro, para responsabilizá-los na colecta do imposto de palhota. Segundo, para os utilizar como angariadores de mão-de-obra.

Claro que existiram diferentes configurações e muitas interpretações dessa mesma relação, que foi sempre mais uma realidade de natureza legal, limitada a uma existência no papel mais do que propriamente nas dinâmicas políticas. Incompreensível e despicienda do ponto de vista africano. Em inícios do século XVII, por exemplo, discutiu-se em Angola o sentido dos tratados de vassalagem celebrados entre a coroa e os reis, sobas ou chefes locais. Beatrix Heintze, uma importante historiadora alemã de Angola, demonstrou até que ponto esses mesmos contratos não passavam de uma ficção jurídica imposta pelo Estado colonial.

No entanto, é inegável que a questão dos contratos de vassalagem foi recorrente na história colonial portuguesa em Angola, talvez por permitir o funcionamento de um colonialismo a baixo custo. Neste quadro, era possível substituir dispositivos de controlo por colaboradores locais, fazendo com que sobas e chefes tribais fossem integrados nos graus mais baixos da hierarquia do Estado colonial.

Entre as reformas promulgadas por Adriano Moreira, enquanto Ministro do Ultramar, a 6 de Setembro de 1961, encontra-se a denominada Lei das Regedorias. A série de diplomas ditos reformistas, entre os quais se incluiu, também, a mais famosa abolição do indigenato, foi publicada na data do aniversário do ministro, facto que só por si indicia um tipo de egocentrismo alucinado, por parte de quem não quis perder a oportunidade de utilizar o exercício do poder público para a sua glorificação individual.

Numa série de trabalhos de investigação, Fernando Pimenta, Miguel Jerónimo, José Pedro Monteiro, Teresa Furtado, Bernardo Pinto da Cruz, Nuno Domingos, Franco Tomassoni e eu próprio conseguimos demonstrar alguns aspectos que ajudam a uma correcta compreensão dessas mesmas medidas reformistas. Primeiro, longe de instaurar uma ruptura e uma nova ordem, em que para trás ficaria a desordem e a repressão, elas inscrevem-se numa preocupação constante com a questão do mercado da mão-de-obra. Por isso, é um mito e um erro dizer-se que Adriano Moreira foi um abolicionista como o tinha sido, no século XIX, o Marquês de Sá da Bandeira.

Em segundo lugar, as disposições legais relativas às regedorias representam um modo tradicional do governo das populações, justamente, por colocarem os regedores, enquanto chefes tribais, como colaboradores do Estado colonial. Na perspectiva de quem estava no centro da tomada de decisões políticas e tinha capacidade de promulgação das leis, o que se tirava com uma mão, ou seja, a abolição de categorias dividindo os indígenas dos não-indígenas, impunha-se com a outra, no sentido da fixação das tribos, com a suas aldeias e os seus chefes. No fundo, tratava-se de impor uma visão oficial do tribalismo (desmontada tanto por inspectores coloniais, como representada por Lobo Antunes em Os Cus de Judas). Mais: há uma ligação concreta que o diploma dito reformista antecipa que é a adaptação das regedorias a uma política de aldeamentos e de concentração das populações, tendo em vista o seu controlo.

Em terceiro lugar, as regedorias estariam ligadas a uma espécie de concepção carcerária do Estado colonial, da qual não estava ausente a vontade constante de levar os indígenas a trabalhar. A este respeito, importa lembrar que Adriano Moreira, depois de ter dedicado um primeiro trabalho de natureza escolar ao Direito Corporativo (1950), se virou para a questão colonial. Neste âmbito, elegeu como tema da sua dissertação para professor ordinário da Escola Superior Colonial (que não era uma instituição universitária, com capacidade para conferir doutoramentos, mas uma escola de formação de administradores coloniais): O Problema Prisional Português do Ultramar (1954). Sem grande originalidade, na sequência das exposições doutrinárias em matéria penal e prisional de Beleza dos Santos, este último livro é bem revelador da preocupação de Moreira pelo controlo carcerário, a nível colonial.

Por essa razão, não será de estranhar que, em inícios de 1961, ainda como Subsecretário de Estado do Ultramar, tivesse aproveitado um dos relatórios sobre os acontecimentos ocorridos na Baixa do Cassange, para sugerir a Salazar uma política de aterrorização das populações, que fosse capaz de se opor ao terrorismo. Aliás, muito mais moderadas, porque baseadas num conhecimento do terreno, parecem ter sido as medidas que veio a propor o General Deslandes.

Em quarto e último lugar, Adriano Moreira não foi o introdutor da obra de Gilberto Freyre em Portugal. A história da recepção e sucessivas apropriações da obra do sociólogo brasileiro tem sido feita por Alfredo Margarido, Gerald Bender, Victor Kajibanga, Valentim Alexandre, Cláudia Castelo e Nuno Porto. Este último, num trabalho de grande profundidade sobre o Museu do Dundo, revelou até que ponto, ao longo da década de 1950, se desenvolveram formas de oposição à figura de Freyre no interior do Estado Novo. Podemos acrescentar que elas se mantiveram na década seguinte.

O mérito de Adriano Moreira esteve, talvez, em ter conseguido contribuir para convencer o regime de Salazar, nos inícios da década de 1960, a colar-se à figura de Freyre que tinha larga aceitação nos meios intelectuais internacionais, onde se faziam sentir as vozes de jornalistas e intelectuais contra as políticas coloniais. No entanto, esta colagem às ideias lusotropicalistas não só foi muito tardia, como não correspondeu em nada ao cenário de guerra e de grandes movimentos de população que estavam em curso.

Assim, o famigerado reformismo inspirado em Freyre, que corresponde a um cenário de guerra e responsabilidade militar do qual Adriano Moreira sempre se procurou descartar, foi contado com astúcia nessa peça de autocelebração e mitografia intitulada A Espuma do tempo: memórias do tempo de vésperas (2008). Nestas memórias, uma das passagens mais alucinadas diz respeito ao seu encontro com Salazar, em 1961, no momento em que este decidiu entregar-lhe a pasta do Ultramar. A narrativa do acontecimento sucede à evocação do modo racional como preparou a antiga Escola Colonial para se transformar num instituto ultramarino de cie?ncias sociais e politicas, convidando, isso sim, professores com doutoramento, a começar por Vitorino Magalhães Godinho, do qual se descartou na primeira oportunidade (como conta nas suas memórias José Hermano Saraiva). Tal como se, após a racionalidade da ciência, o reconhecimento de Moreira tivesse de ficar associado à esfera do poder carismatico de Salazar.

Adriano Moreira conta, então, como surpreendeu o Presidente do Conselho na intimidade da sua devoc?a?o, a arrumar os paramentos, após a Missa e antes de lhe passar o testemunho, nomeando-o para o governo. A? racionalidade somou-se, enta?o, a inspirac?a?o divina, sugerindo um milagre em que o eleito era o próprio narrador das memorias. Para concluir, num salto que tem tanto de argumentativo, como de profetico, que tivesse sido ele o eleito para suceder a Salazar e a transic?a?o da Ditadura para a Democracia teria sido pacifica, como Adolfo Suarez veio a conseguir em Espanha. Já o escrevi em livro, mas repito, que é impossivel validar como serio o relato de um profeta ressentido que so pensa na sua justificac?a?o.

Para quem tem interesse em compreender os anos de guerra colonial – o que ela significou para os militares, o terror em que se viram envolvidas as populações (conforme tem argumentado, com uma sólida base analítica e arquivística, Carlos Pacheco), os interesses internacionais e económicos que estavam em jogo – a passagem, de menos de dois anos, de Adriano Moreira pelo Ministério do Ultramar foi irrelevante.

Essa mesma passagem, porém, não pode ser esquecida em termos da utilidade que teve para o próprio, que transformou a antiga Escola Colonial em instituto integrado na Universidade Técnica. Conseguiu, assim, nomear-se a si próprio como catedrático, sem nunca ter feito o doutoramento (parece que só o veio a fazer em 1974, na Universidade de Madrid, mas em qual e em que departamento não se sabe ao certo). Uma transformação de estatuto da escola em universidade que Marcello Caetano nunca aprovou, considerando-a um mero resultado da obsessão portuguesa pelos doutores.

Com todas estas críticas e formas de romper com uma série de mitos, não me move nenhuma intenção de atacar pessoalmente um morto que a maioria – a começar pelos membros da sua própria escola e toda uma comunidade de politólogos que o instituiu como figura ancestral (Ciência política à portuguesa, 2020) – celebrou em vida e, na hora da sua morte, se apressou a louvar. Enquanto historiador, centro-me mais no estudo dos processos – de controlo, mas também de resistência – do que nas biografias. Quanto a estas últimas, estou aliás mais interessado nas biografias e autobiografias dos homens comuns do que no elogio dos grandes homens, transformados em bandeiras de grupos.

Dito isto, acho desproporcionado e até injusto, do ponto de vista dos valores, que se fale tanto do reformismo de Adriano Moreira e se saiba tão pouco da actuação do General Deslandes, enquanto governador de Angola. Verifico também que uma tal atitude de reconhecimento exacerbado, em relação à mesma figura de Moreira e a muitos membros da sua escola, alguns deles envolvidos mais tarde no negócio das universidades privadas, não encontre correspondente no que respeita aos soldados, oficiais e generais, tendo os últimos servido em duas, três ou quatro comissões nas antigas colónias, mas que são agora esquecidos.

Claro que admito que, em todas as sociedades, se faz sentir a necessidade de criar heróis para que, em conjuntos mais ou menos alargados, possamos partilhar os mesmos valores e idênticas formas de admiração. Mas, na actuação pública de Moreira, bem como nas suas obras que são sobretudo manuais de ensino, sem grande originalidade, o que vejo, repito, é uma alucinada preocupação com a posteridade e uma cuidadosa gestão desses dois anos em que foi ministro de Salazar, a quem poderia e deveria ter sucedido. Pelo menos, é esta a sua própria interpretação. Donde, a existência, na sua narrativa e imagino nas suas comunicações orais, de golpes alucinados de profeta e um particular pendor para o uso de palavras, sem grande substância, mas erguidas ao estatuto de conceitos novos. Foi o que sucedeu com a noção de “euromundo”, que nada explica, mas acredito que pode impressionar uma assembleia de incautos.

No entanto, tenho de reconhecer que, em matéria de alucinação e, mais concretamente, da relação de figuras públicas com populações dominadas, há figuras públicas muito piores. Foi o que sucedeu numa entrevista de Bolsonaro, em 2016, acerca do canibalismo entre os índios, que se tornou viral nas redes sociais. O que mais horroriza não foi só a sua aceitação de que se tratava de uma prática generalizada por parte de quem era inferior, foi também a sua intenção de ter querido partilhar essa mesma experiência de comer o índio na panela. Em frente de um incrédulo jornalista, Bolsonaro disse-o com uma naturalidade e uma candura que são, simplesmente, assustadoras. Ora, tudo isso me parece bem pior…

Related Articles

Back to top button