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Para o jurista não é normal que um acordão do Tribunal Constitucional não identifique o relator

O advogado Benja Satula, professor assistente na Universidade Católica de Angola, acredita que o Presidente João Lourenço “não deveria tomar posse nestas condições”, porque todo o processo eleitoral está eivado de suspeitas e garante que o MPLA montou um sistema que “defende os interesses instalados”. O mestre em ciências jurídico-penais pela Universidade Católica Portuguesa sublinha que estas eleições “expuseram todas as fragilidades do sistema e retiraram credibilidade ao processo de apuramento” dos resultados eleitorais.

Face a tudo o que se passou nestas eleições, João Lourenço tem toda a legitimidade para tomar posse?
Olhando de forma desapaixonada para todo o processo eleitoral – sublinho processo e não me limito apenas ao acto de votar –, designadamente as alterações à Lei Eleitoral, o uso abusivo dos meios e recursos públicos para favorecer um e prejudicar opositores, a pressão sobre a indústria hoteleira para boicotar adversários, as alterações despropositadas aos regulamentos da Comissão Nacional Eleitoral [CNE], a proibição de sondagens, a animosidade para com o iniciativa cidadã “Votou, Sentou” e, por último, a intransigência por parte da CNE em publicar as actas sínteses e de o Tribunal Constitucional produzir uma verdadeira decisão que respeite a vontade popular e confira verdade, transparência e confiança eleitoral, a minha resposta é sim, humildemente acredito que o Presidente eleito não deveria aceitar tomar posse nestas condições.

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E até deveria promover, ele próprio, a publicação das actas síntese [com os resultados das assembleias de voto], a menos que todos os intervenientes tenham plena consciência, como eu suspeito, que realmente perderam as eleições.

Tem, pois, uma visão negativa do trabalho da CNE e do Tribunal Constitucional neste processo eleitoral?
Como homem de fé e cristão, penso sempre que os homens, no fim de tudo, podem redimir-se dos seus erros e surpreender pela positiva aqueles que os rodeiam. Isto para dizer que quer a CNE, quer o Tribunal Constitucional, como de resto todas as instituições soberanas e/ou públicas da República de Angola, foram concebidas e estão formatadas para defenderem os interesses instalados – defender o sistema montado e cavalgado pelo MPLA –, basta observar a sua estruturação, composição e o modo de provimento. Por isso, a atitude que tomaram, apesar de prejudicial para a República e desrespeitadora da vontade do povo, é aquela que o sistema esperou, espera e esperava que eles tomassem, infelizmente.

O Presidente João Lourenço e o MPLA instrumentalizaram a justiça eleitoral?
“Justiça” seja feita ao Presidente, a instrumentalização na generalidade e a eleitoral, em especial, já anda a ser feita desde 2008. É obra do MPLA, mas o actual Presidente do MPLA o que fez foi lançar mão de uma instrumentalização pré-existente e concebida pelo Regime.

Nesse domínio, estas eleições foram piores ou melhores que as anteriores?
Estas eleições foram as “melhores”, a ocasião e o contexto não poderiam ser mais favoráveis, pois contou com uma aderência e envolvimento da sociedade civil jamais vista, imensas iniciativas de treinamento para a consciência eleitoral e fiscalização dos actos e uma afluência de jovens às urnas; por outro lado, o cenário de um povo desgastado com o sistema, um povo que se solidarizou com os brutais ataques que Adalberto Costa Júnior [líder da UNITA] sofreu do sistema e de toda a sua máquina, num contexto de criação da Frente Patriótica Unida – que foi inteligente em não se submeter ao crivo do Tribunal Constitucional e manteve-se uma coligação não formal.

A isso se acresce o contexto de um MPLA em luta consigo mesmo, onde os artífices dos pleitos anteriores estavam afastados e a contas com a Justiça, acrescido do desgaste provocado pela ausência de sabedoria quanto à gestão da imagem do seu Presidente emérito, quer nos últimos dias da sua vida, quer depois da morte. Esta conjugação de factores transformou estas eleições numa excelente oportunidade para se descobrir “as misérias do processo” e as artimanhas eleitorais de distribuição fictícia de lugares, expondo todas as fragilidades do sistema e retirando credibilidade ao processo de apuramento e não à votação em si, aliás a derrota do MPLA em Luanda é prova do que lhe digo.

É verdade que os juízes do Tribunal Constitucional não sabem quem foi que redigiu o acórdão que validou as eleições?

Não é possível todos os juízes saberem a proveniência do projecto de acórdão que foi à discussão, embora também não seja normal que um acórdão do Tribunal Constitucional não identifique o relator. Mas não é a primeira vez, neste período de 2017 a 2022 parece-me ser o segundo ou terceiro acórdão com paternidade ou maternidade incógnita. Sucede sempre que a decisão a ser tomada é, no limite polémica. Agora, não é de estranhar que para a elaboração do projecto de acórdão tenham contribuído “elementos estranhos” ao Tribunal antes do mesmo ser formalmente introduzido a plenário para discussão.

No que diz respeito à independência da justiça em Angola, hoje a situação está pior ou melhor que no tempo de José Eduardo dos Santos como Presidente?
Reafirmando o que já disse antes, o sistema, as amarras e as armadilhas são antigas e o responsável por isso é o MPLA que, fruto das “maiorias qualificadas” que vem tendo desde 2008, blindou todo o sistema para que ninguém escapasse aos seus comandos. Basta lembrar, de entre vários exemplos, a forma como o antigo presidente do Tribunal Constitucional [Manuel Aragão] foi escorraçado, depois de, diga-se, ter chegado lá de forma misteriosa pela mão do mesmo sistema que o escorraçou quando ousou agir de acordo com a sua consciência.

Por isso, a diferença entre a época de José Eduardo dos Santos e a actual distingue-se apenas pelos caracteres. Só para demonstrar como o sistema funciona, repare que a razão que levou a que o anterior Presidente fosse “afastado” foi o limite de idade, entretanto, no mesmo tribunal está uma Conselheira que atingiu o limite de idade no primeiro semestre deste ano e lá permanece, tendo participado “serenamente” nestas decisões ligadas ao processo eleitoral.

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