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O LEVANTAMENTO DE HIPÓTESE DE INVESTIGAÇÃO NO MÉTODO CIENTÍFICO: UM PROCEDIMENTO INÚTIL EM ANÁLISE DO DISCURSO – João Ngumbe

Percebi mais notavelmente, desde que comecei a minha vida profissional activa nas questões de investigação e de ensino superior, de uma certa presença, no nosso contexto, do modelo de escrita científica canónico nos trabalhos académicos de alguns colegas meus, mas mais nos trabalhos que orientam dos nossos estudantes finalistas, o que não significa assumir a ideia de que se investiga mínima e rigorosamente de acordo as regras do método científico. Porém, quase todos os esboços de investigação, que tenho lido e discutido em reuniões próprias, antecipam-se com uma hipótese, uma resposta prévia ao problema que está na origem da investigação planificada. Dito de uma maneira genérica, não parece suscitar algum problema. Pois, trata-se de um registo de organização da actividade do pensamento que tem atrás de si todo um património que hoje nos faz pensar e representar melhor o mundo à nossa volta. Esta dimensão da ciência, de património bem estabelecido em toda humanidade, torna difícil a crítica contra os seus procedimentos.

Nas próximas linhas deste texto procurarei costurar a minha contribuição, ou melhor, a minha opinião – daí justificar-se uma utilização frequente da primeira pessoa – no sentido do desbravamento do duríssimo terreno da crítica contra os procedimentos da ciência moderna, incidindo particularmente sobre a hipótese como uma parte inútil da estrutura lógica da investigação científica, particularmente no contexto daquela que é baseada no método de análise do discurso. Ou seja, no campo da análise do discurso, para já, como é evidente, não lidamos com coisas naturais que se determinam como sendo necessariamente uma quantidade. E o argumento para esta não representação quantitativa dos objectos em análise do discurso não está longe: um discurso, no sentido em que o definimos no nosso texto anterior, “os nomes e as coisas: contributo para um debate”, é uma qualidade que não se reduz ao modo como se vai reproduzindo. Para clarificar com uma utilização metafórica, é um bocado como o sangue que não fica mais nem menos vermelho ou aguado ao se capilarizar pelas artérias do corpo. Portanto, o discurso não se reduz ao número de vezes em que é partido em unidades de sentidos num (con)texto político ou ideológico em análise, por exemplo.

A ideia principal do texto vai no sentido de que a hipótese funciona como um organizador cognitivo, uma espécie de muleta, no fundo, ao mesmo tempo produz um efeito de limitação e de controlo, que é desnecessário para aquele investigador social humilde que, do ponto de vista ético, reconhece o seu estado de ignorância e de sem resposta às coisas a sua volta como condição de partida para as investigar e conhecê-las. Faz sentido em ciência investigar coisas para crer nelas e não o contrário: crer em coisas para as investigar, como parece acontecer na religião; primeiro a fé em Deus, depois o conhecimento da sua natureza, numa lógica que me parece ser de compensação, isto é, acreditar para usufruir da sua misericórdia.

O argumento que é comumente utilizado para justificar a fixação da hipótese, para além do que referimos no início: uma questão de património e de história da ciência, e não propriamente algo lógico no campo da análise das coisas que existem numa relação entre coisas, é, na minha opinião, demasiado frágil. Ou seja, referir que ela é necessária, a hipótese, porque actua como uma espécie de baliza de alinhamento – como alguns colegas jovens investigadores disseram numa reunião recente que tivemos sobre o método científico, em webinar, num grupo dividido entre Moçambicanos e Angolanos, em jeito de aula organizada pelo Profº Elísio Macamo – portanto uma baliza que impede o investigador de se dispersar em pensamento ao longo do processo da investigação. Isto é um argumento que levanta outro problema: o problema da sua instrumentalização e da sua representação como acessório da cabeça do investigador que não deseja ver-se espalhado em ideias. Portanto, assumir como válido este argumento é como também assumir como válido uma definição de rio que inclui nos termos de sua definição a natureza da dificuldade que as suas águas, na sua camada mais profunda, enfrentam no percurso da sua trajectória, ou então, como se estivéssemos a incluir na definição da nossa casa o seu estaleiro e os seus andaimes – como podem ver nestes dois exemplos, é confuso definir coisas pelos seus acessórios.

A definição de uma casa, neste caso, pela sua natureza, é real, está na função, mas sobretudo na forma como se apresenta como objecto, e não propriamente na sua imaginação ou na ideia que ela era capaz de ser de acordo as suas fundações, por exemplo. Da mesma maneira que um trabalho de investigação científica, que não se mede pelas presunções que estavam a sua origem. As presunções na investigação de natureza social, se é que ainda estiveram na sua origem, elas perder-se-ão na trajectória angustiante de andar para frente para trás para a estabilização da cientificidade do seu objecto, isto sem falar da outra agonia de não saber se tomamos as decisões mais acertadas em matérias de natureza técnica, de exequibilidade e etc. Neste sentido, o esforço de tentar presumir o resultado de uma investigação através da hipótese tem, em meu entender, um nome: chama-se manipulação, que pode ser um problema de determinação e afirmação ética do próprio investigar.

Ultimamente, as análises sociológicas do conhecimento, designadamente da circulação e distribuição deste no espaço social, têm-se trabalhado muito a ideia de conhecimento emancipatório, que é um desafio que se justifica do ponto de vista ético e político, tendo em conta as relações entre o acesso ao conhecimento e as questões de dominação de classe. Uma das condições epistémicas para este desafio se resume numa postura de reconhecimento do outro lado do contexto da investigação e da intervenção, isto é, conhecer então é “conhecer-com” e “compreender-com…” e “intervir-com…”. Este arranjo flexionado nessas expressões – conhecer, compreender e intervir – subentende a ideia de uma aproximação ao Outro e ao seu contexto, desgarrando-se de presunções sobre o Outro e sobre as coisas e os contextos investigados.

Pierre Bourdieu, por exemplo, em “A Miséria do Mundo” (2003), rompe com o estilo normativo do processo de produção do conhecimento, com o alcance de um método mais activo em relação às vozes dos Outros agentes e das suas histórias de vidas. São entrevistas colectivas aos camponeses e operários que habitam num universo de trocas simbólicas específicas. Basicamente, é um procedimento que se situa entre um registo mais narrativo e biográfico e a preocupação pela investigação engajada e honesta com os conteúdos das escutas, com a compreensão do Outro, nomeadamente dos significados e das representações que estes atribuem às coisas do campo social.

Último exemplo, para fechar o nosso argumento, de que a hipótese é inútil na investigação sociológica baseada nas questões de natureza discursiva, reside no trabalho de Freud, que prescinde de hipóteses e de todo esquema do método científico, mas nem por isso, como diz o Professor Alberto Correias, deixou de ser menos cientista do que aqueles que se afirmam como cientistas. Esses exemplos foram propositadamente aqui trazidos: assegurar o próximo voo de discussão sobre o reconhecimento de que existem várias formas de se pensar e de se fazer ciências sociais e humanas, e, por conseguinte, vários estilos de escritas científicas.

[1] Mestre em Ciências da Educação, Especialidade de “Educação, Comunidades e Mudança Social” pela Universidade do Porto-Portugal.

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