Cultura

Maria da Conceição Neto: “Um pouco mais de história pode ser útil, na confusão reinante”

Há livros e artigos, intervenções em fóruns diversos, teses académicas de angolanos e estrangeiros, relatórios e Actas de Conferências dos Ministérios da Cultura e da Administração do Território. Quem se der ao trabalho tem muito para estudar sobre o “Direito Costumeiro” e a relação do Estado com as “autoridades tradicionais”. Apesar disso, surge um caso mediático e logo ganham espaços afirmações sem bases históricas, antropológicas ou jurídicas, como se todo aquele conhecimento se tivesse evaporado. Desafiada a voltar a um debate antigo sobre “autoridades tradicionais”, agora a propósito do Bailundo, escolhi apenas alguns tópicos, sendo fáceis de localizar textos meus mais desenvolvidos.

1. Pode um rei ser destituído? Sim, pode. Surpreende-me que se invoquem “as tradições” para negar isso. Não faltam exemplos na historia do Kongo, Kasanje, Viye, Lunda, etc. Nas sociedades Bantu, o poder dos grandes chefes podia ser bastante despótico, mas era moderado por algumas instituições. Por um lado,

A sucessão não era automática e a escolha era feita entre vários candidatos possíveis, obrigando a alianças e consensos; por outro, era possível a destituição do soberano, desde que assim o determinasse um número significativo de membros da aristocracia (os conselheiros, os principais chefes de linhagem ou regionais). Era uma opção melhor do que um confronto violento entre facões, que também podia ocorrer.

No caso do antigo Mbalundu, há referâncias históricas ao “tribunal dos notáveis”, impunga, cuja sentença podia obrigar o soberano a abdicar a favor de um sucessor legitimo. Actualmente, julgo usar-se a palavra elengo para o conjunto dos mais importantes conselheiros do soma inene. Esse conselho pode variar no nome e em número, pois há antigas funções (e portanto títulos) que desapareceram, mas normalmente competiria a quem detém o cargo de Mwekalia, figura de maior destaque, propor a destituição do rei, se ele cometer infracção grave e prejudicar o reino. Porém, neste assunto como em tantos outros, as tradições adaptam-se e refazem-se. E no Bailundo que terão de confirmar-se uma “delegação local da Associação Angolana das Autoridades Tradicionais” e “alguns membros da Corte” (cito a imprensa) têm essa legitimidade na jurisprudência tradicional invocada. Não é assunto do Governo nem de partidos políticos.

2. Um “Rei do Bailundo” não e “Rei dos Ovimbundu”, confusão alimentada em parte pelo favorecimento estatal. Armindo Kalupeteka tornou-se o soma inene Ekuikui V após a tradicional verificação de legitimidade e os devidos rituais, que não me compete discutir. O que ele não foi nem pode ser é “Rei dos Ovimbundu”, como por vezes é dito. Os Ovimbundu não formaram “um reino”, mas vários, os tais “Estados do Planalto” que se estudam nas escolas: Viye (Bie), Wambu (Huambo), Ciyaka (Quiaca) Ngalange (Galangue), para citar só alguns que nunca pertenceram ao Mbalundu (Bailundo) nem foram dele tributários.

Um “rei” e a sua ombala representam hoje, simbolicamente, um Estado que outrora existiu no nosso território. Um “reino” e uma formação politica, não e um “grupo etnolinguístico” nem uma “etnia”, tendo havido Estados mais homogéneos ou mais heterogéneos do ponto de vista linguístico e étnico. No caso dos Ovimbundu, alguns reinos menores estiveram sujeitos ao Mbalundu, pela força ou por vontade própria, quando ele se tornou mais poderoso, no seculo XIX. O famoso Ekuikui II governou quase 20 anos, ate falecer em 1893, e, nesse período de auge económico e politico, os portugueses não se atreveram a atacar o reino, apesar de terem conquistado o vizinho Viye (Bie) em 1890. Só em 1896 o Bailundo caiu sob domínio português – e não totalmente.

Em 1902 estalou a “revolta do Bailundo”, liderada inicialmente por Mutu ya Kevela, morto em combate em 4 de Agosto desse ano. Na verdade, os maiores combates com os portugueses não foram no Bailundo, mas no reino do Wambu ainda independente, nomeadamente nos rochedos de Nganda e Kawe e nos de Kandumbu, em Setembro de 1902. A maior fama do Bailundo na historiografia da região deveu-se, em parte, a projecção internacional dada por missionários protestantes norte-americanos ali residentes desde os tempos de Ekuikui II. Os primeiros trabalhos antropológicos e históricos foram em língua inglesa, apoiando-se nessas Missões e nos registos que deixaram. Por outro lado, com uma população numerosa, originárias do Bailundo no tempo colonial “povoaram” cidades como Lobito e Huambo e foram mão-de-obra, forçada ou voluntaria, em toda a Angola. Mas os do Bailundo não são a maioria dos Ovimbundu.

3. Pode um Rei ser julgado num tribunal da Republica? Sim, se exigimos que ninguém esteja “acima da Lei”. O respeito por tradições ancestrais, a herança africana, a cultura bantu, e quaisquer identidades individuais ou colectivas, não pode sobrepor-se às leis e aos tribunais da Republica. Conhecemos o longo debate de juristas, antropólogos, sociólogos e historiadores, sobre o pluralismo jurídico. Este é um facto em praticamente todas as sociedades, acolhido ou não pela jurisprudência dominante. Em Angola, há “tribunais” de família em que mais velhos decidem sobre direitos de propriedade ou o destino das viúvas e dos filhos; há pessoas “julgadas” pelas hierarquias religiosas ou pelos seus “irmãos” numa assembleia da Igreja; e há assuntos que alguns preferem resolver num “tribunal tradicional”. Mas nenhum cidadão pode negar-se a enfrentar a Justiça nos tribunais do Estado, quando for o caso. Muitas Igrejas têm Tribunais Eclesiásticos, mas isso não significa que padres, pastores ou bispos sejam julgados “apenas pelos seus pares” e não pelos tribunais comuns. Que razão haveria para permitir que tal acontecesse com um chefe tradicional? Em Março de 2017, um homem foi morto na sequência de um julgamento na ombala do Bailundo. O crime aconteceu. O soma inene, considerado co-autor moral, tem direito a um julgamento justo, mas não pode negar a legitimidade dos tribunais e simplesmente ser “julgado pelos seus pares”. Alias, tendo ele tirado um curso de Direito, certamente não vai alegar ignorância da Lei.

4. Os Reis são, de facto, “os representantes das comunidades”? Quando nos referimos a chefias importantes, as “autoridades tradicionais” devem ser olhadas como actores políticos com agendas próprias e estratégias de poder, em busca de benefícios materiais e não só simbólicos. A instrumentalização das autoridades tradicionais pelo Estado ou por partidos políticos, visando controlar a população ou buscar apoios, não é novidade. Também não é novo que “autoridades tradicionais” explorem isso em seu beneficio. Só por paternalismo ou ingenuidade podemos considerar essas pessoas como simples “representantes das comunidades”. Os soberanos não foram eleitos por todos, foram escolhidos por alguns membros das tradicionais linhagens mais influentes e só podem chegar ao poder se tiverem tal descendência.

Representam uma visão aristocrática da sociedade, não uma visão democrática. Para usar o exemplo do Bailundo, o rei Ekuikui V não é propriamente um ancião isolado na sua ombala, a debitar frases proverbiais, receber homenagens e realizar antiquíssimos rituais para garantir a chuva. Ele tem os negócios pessoais, estudou na Faculdade de Direito, pertence à estrutura superior de um partido politico e provavelmente seja cristão praticante. Em tempos antigos, algumas destas coisas seriam impedimento para ser soma inene do Bailundo, mas (repito) as tradições adaptam-se, em qualquer parte do mundo.

5. Até onde chega o poder do Rei do Bailundo? Sabemos que não coincidem as fronteiras administrativas (Províncias, Municípios, Comunas) com antigos reinos e suas subdivisões. Alias, na lógica desses Estados antigos, “pertencia-lhes” uma aldeia habitada por gente “sua”, mesmo ficando a centenas de quilómetros e no meio de um outro Estado. Hoje há muito mais originários do Bailundo fora do que dentro do Município, tal como há pessoas no Bailundo que não têm ali raízes familiares. Ate onde se estende o poder do soma inene? Quem lhe deve obediência? O mesmo poderia perguntar sobre representantes dos antigos Estados de Kasanje, do Kwanyama, ou dos Ngola, por exemplo.

Para o regime colonial foi fácil: dividiu a população em “cidadãos” e “indígenas”, tendo estes leis especiais, tribunais especiais, impostos especiais e… sujeição às chefias tradicionais da aldeia, bairro ou região, que respondiam pelos seus “filhos” e eram castigadas quando não satisfizessem as exigências do Estado. Até 1961, a doutrina colonial vigente aceitou o direito costumeiro, visto como “usos e costumes” de povos incivilizados, desde que não afectasse os interesses do colonizador. Após 1961, abolido o “indigenato”, a categoria dos “vizinhos de regedorias” substituiu a dos “indígenas”, evitando assim que, de repente, todos reclamassem direitos dos “cidadãos”. Mas na Republica de Angola somos todos cidadãos e não podem dividir-nos em categoriais jurídicas à maneira colonial. Este problema continuará a surgir sempre que discutirmos Poder Local e Autarquias, já que o Poder Tradicional terá de ser tido em conta. Um crime como o acontecido no Bailundo e as reacções que provocou (mais a situação do rei do que o crime, e a triste verdade) obriga-nos a pensar até onde queremos ir na acomodação do direito costumeiro (incluindo poderes judiciais de autoridades tradicionais) no ordenamento jurídico de uma República democrática.

Related Articles

Back to top button