Lula da Silva recebeu, no primeiro dia deste ano de 2023, pela terceira vez, a faixa presidencial, o céu estava límpido e o calor era intenso, e o Presidente brasileiro comoveu-se e comoveu o mundo, ao receber a faixa de uma mulher negra, catadora de lixo, que fazia parte de uma comitiva simbólica que deu sentido às palavras de Lula da Silva de que será presidente de todos os brasileiros.
No pequeno grupo de pessoas que subiram com o Presidente Lula da Silva a rampa do palácio presidencial, que se pretendiam representativas do povo brasileiro, estavam cacique indígena Raoni, um metalúrgico (Lula foi em tempo um deles), uma cozinheira, um professor, uma criança negra e um influenciador digital que sofre de paralisia cerebral. Subiu também a rampa do palácio presidencial com Lula, Janja da Silva, a mulher, que se fazia acompanhar de um cão rafeiro adoptado pelo casal e que tem o nome de Resistência.
Nestas cerimónias estiveram presentes o Presidente João Lourenço, acompanhado pela primeira-dama Ana Dias Lourenço e pelo ministro das Relações Exteriores Téte António, o encontro entre os dois presidentes foi visivelmente fraterno, como documentam inúmeras imagens.
Quem não assistiu foi o ex-presidente Jair Bolsonaro, que se recusou a cumprir o acto formal da transmissão democrática do poder, e se refugiou na Flórida, nos Estados Unidos. Bolsonaro assistiu à distância ao dia de festa que se viveu no Palácio do Planalto, em Brasília, como um foragido.
Mas o país está dividido, e Lula da Silva sabe disso mesmo, daí que os seus actos simbólicos e os seus discurso tenham ido no sentido de aplacar ódios.
Lula da Silva fez dois discursos, que não tiveram o mesmo tom, o primeiro no Congresso Nacional e depois, um segundo, para a multidão – e foi de facto uma multidão impressionante que convergiu para a capital política do país – concentrada no coração do poder em Brasília, na Praça dos Três Poderes, e nas ruas adjacentes.
No primeiro discurso, falou de democracia, inclusão social e cidadania, da lei, de civilidade em vez de barbárie, que não poupou nas críticas ao seu antecessor, assinalando que “ditadura nunca mais” e que a “democracia” é para sempre. O segundo discurso foi mais emotivo, Lula pediu a ajuda de Deus e falou dos muitos ricos e dos muitos pobres, falou ainda dos povos indígenas, vistos como um obstáculo ao desenvolvimento e das mulheres vítimas de uma sociedade machista que regressavam a passos largos acompanhando a miséria crescente. Falou ainda dos negros e dos mestiços, a maior parte da população desfavorecido no Brasil, marcas de passado esclavagista que teimam em não desaparecer.
Não foi a primeira vez que Lula da Silva subiu a rampa do Palácio do Planalto, mas desta vez foi diferente. Há exactamente vinte anos fazia-o pela primeira vez, e por dois mandatos de quatro anos. Mas hoje, admitem todos os analistas, Lula da Silva não é o mesmo homem que subiu a mesma rampa e o seu discurso foi diferente, continua a prometer que vai acabar com a fome dos brasileiros, mas quer tornar-se também um protagonista dos desafios que colocam ao mundo as alterações climáticas e promete desmatamento zero na Amazónia.
Para isso conta com uma frente vasta de apoio, nas ruas e no governo, lado a lado com Lula subiu igualmente a rampa do palácio presidencial o seu antigo adversário político Geraldo Alckmin e a sua mulher, o ex-governador de São Paulo é agora o vice-presidente do país. Lula pretende criar uma frente comum que vai da esquerda ao centro-direita para governar num país dividido pelo ódio, com famílias profundamente desavindas.
Também por isso, Lula da Silva pediu aos brasileiros que façam as pazes com os seus familiares e disse: “não existem dois brasis. Somos apenas um país e uma grande nação”, disse ainda que a história não perdoará os quatro anos de destruição a que se assistiu no Brasil e adiantou que vai distribuir para todos os poderes da República Federativa e para as universidades o que chamou “o relatório do caos”, elaborado pelo governo de transição e que faz o diagnóstico do estado em que o país se encontra.
Nessa altura, a multidão gritava: “sem amnistia”, sendo que Lula defendeu a conciliação e pediu o fim dos ataques extremistas. Terminou com mais um acto simbólico desenhando um coração com as mãos que contou com a participação de Janja.
E parece ser esta a imagem que o Brasil quer dar ao mundo neste ano de 2023, de paz e reconciliação.
Mas os desafios são tremendos e as suas promessas de conciliação pode não passar disso mesmo que Lula não as conseguir conciliar com desenvolvimento económico, fiscal e de justiça social.
E é neste fracasso de Lula que Jair Bolsonaro aposta, desde já e a partir de Orlando, na Flórida, nos Estados Unidos. A sua ausência foi claramente notada, mas era isso mesmo que pretendia o ex-presidente, que não entregou a faixa presidencial a Lula da Silva como é protocolar em transições pacíficas e democráticas do poder, num país que viveu entre 1964 e 1985 uma ditadura militar e que Bolsonaro, de alguma forma, voltou a fomentar, sem o conseguir.
Lula da Silva lembrou isso mesmo, no seu discurso no Congresso, e disse que Bolsonaro ameaçou a democracia no Brasil, lembrando que nos tempos da redemocratização do país se ouvia “ditadura nunca mais”, agora, e depois do que o Brasil viveu, “do terrível desafio” nas palavras de Lula, deve ouvir: “democracia para sempre”.
E tudo isto Bolsonaro viu – se é que viu – à distância, numa casa relativamente perto da Disney World, mas antes admitiu que tentou impedir Lula de assumir a presidência do Brasil. “Dentro das leis, respeitando a Constituição, procurei uma possibilidade para isso”, mas não a encontrou, reafirmando, então, que o Brasil “vive uma democracia” e que ninguém está disposto para “aventuras”, na verdade, o que Bolsonaro não reconheceu foi que falhou no seu propósito de impedir Lula de ser empossado, bem como na sua tentativa de pôr sob suspeita o sistema eleitoral brasileiro.