A Camunda News inicia a partir de agora, e ao longo do mês de Junho, uma série de entrevistas e de artigos de análise do que tem sido o combate à corrupção nos quase quatro anos do primeiro mandato do Presidente João Lourenço. O slogan “corrigir o que está mal e melhorar o que está bem” quase que foi esquecido porque é mais o que estava mal do que o que estava bem. A pandemia e crise económica global acentuaram ainda mais esta realidade. A economia angolana bate no fundo, a par de uma séria crise de a saúde pública, com a capital, Luanda, há meses em cerca sanitária.
Começamos este dossier de balanço do combate à corrupção no primeiro mandato do Presidente João Lourenço com a primeira parte de uma entrevista a Rui Verde, Visiting Fellow na Universidade de Oxford e Distinguished Professor do Institute of Indian Managment-Research, Delhi. É consultor jurídico do Maka Angola (Rafael Marques), e tem publicado livros sobre Angola e a União Europeia, bem como participado em conferências académicas e seminários nas Universidades de Oxford, Londres, Birmingham e London School of Economics. Fundador da Angola Research Network e Membro da Royal African Society. Actualmente faz também parte do CEDESA – pesquisa e análise independente, que é uma entidade internacional dedicada ao estudo e investigação de temas políticos e económicos da África Austral, em especial de Angola.
Depois do escândalo da Casa de Segurança, outras notícias, igualmente recentes, dão conta que a Sonangol é, ou continua a ser, o colossal “saco azul” do regime?
A Sonangol é, ou foi – vamos falar do passado – por onde passou quase todo o dinheiro de Angola. Portanto toda a corrupção ou todos os desvios de dinheiro, mesmo aquele que vai para o orçamento de Estado ou que vai para a Casa da Segurança, inicia o seu percurso na Sonangol. A Sonangol, se quiser, é o grande distribuidor de jogo, é a partir daí que se desenvolvem, se assim o quiser chamar, as várias bolhas de corrupção nos vários organismos estatais. Mas o centro, e estamos a falar do dinheiro, é na Sonangol. É normal que o nome da empresa apareça no meio de quase todas as histórias, mesmo as histórias que envolvem Isabel dos Santos, que, e se reparamos, começam na Sonangol. Foi a Sonangol que financiou, ainda nos anos de 1990, a Unitel e, mais tarde, é a Sonangol que vai financiar, aparentemente, a compra da GALP por Isabel Santos. A Sonangol está presente em todos os negócios e por uma razão muito simples: é na Sonangol que está o dinheiro, 90% das divisas que entram em Angola são através da Sonangol.
Optou por dizer foi. Acha que a Sonangol está hoje mais blindada à corrupção?
Há uma diferença, e que é uma diferença estrutural: onde antes havia muito dinheiro, hoje há pouco dinheiro. O nível de corrupção tem de ser forçosamente menor porque não há dinheiro.
É quase uma questão prática. Não é ética ou moral, é mesmo de ordem prática?
Exactamente. Agora não há tanto dinheiro. Mesmo que se quisesse, a situação não seria tão fácil, porque o dinheiro não abunda. As explicações são muitos simples: a Sonangol foi o centro da corrupção porque é por onde passa o dinheiro, neste momento não é, porque há muito menos dinheiro. À parte de tudo isso, há um processo gradual de tentativa de transformar a gestão da petrolífera numa gestão mais transparente, mas que eu acho que só será efectivo quando for privatizada uma parte, isto é, quando se abrir uma janela da Sonangol ao sector privado internacional é que teremos, digamos, uma certificação da qualidade da transparência. Neste momento assistimos a discursos, podem ser reais, não há razão para duvidarmos que o são, mas o acid test da transparência da Sonangol será obtido quando se privatizarem os tais 30% ao nível de uma bolsa internacional.
Não lhe parece que mais do que alienar activos, a Sonangol se deveria reposicionar como uma empresa energética?
É fulcral que a Sonangol abrace o que agora se chama de transição energética, que deixe de ser apenas uma empresa de petróleos – terá ainda os tradicionais compradores do mundo não-ocidental, como a China ou a Índia, mas mundo ocidental, e até como temos visto pelos exemplos da BP e da Shell, a sensibilidade para empresas 100% petrolíferas é muito menor. E Sonagol, que em Angola tem um potencial de riqueza enorme, devia aproveitar para dar esse salto de transferência energética, tendo uma vantagem já comparativa, que é a participação que a Sonangol tem na GALP, que em vez de ser uma participação meramente financeira – que por vezes não se percebe muito bem para que é que serve – a Sonangol podia potenciar essa parceria com a Galp, que está a dar grandes passos na transição enérgica, para parceria estratégica, para a transição energética da Sonangol.
Muitas pessoas já escreveram sobre isso, e o senhor também, sobre a questão da parceria estratégica, sobre essa incapacidade de se concretizar, mas pensamos que isso terá ainda a ver com a participação de Isabel dos Santos?
Começo a ver algumas luzes ao fundo do túnel no que tem a ver com essa questão, posso estar a ser optimista, mas acho que senti algumas reacções por parte da Sonangol nesse sentido, de uma parceria estratégica com a Galp, temos que insistir para que possa ser mais estudado. Obviamente que a falta de solução para o imbróglio Isabel dos Santos, perturba, isso é evidente, e já devia ter tido aí uma aceleração qualquer…
Em que sentido?
Em resolver as questões com a Isabel dos Santos, nos tribunais ou fora deles. Houve os congelamentos que não resolverem nada, sejamos claros. Os congelamentos dão títulos de jornais, mas são sempre medias provisórias. Quando estamos a falar de milhões e milhões e também da vida de milhares de pessoas, de trabalhadores, não podemos meramente congelar, temos de dar os passos seguintes.
Vamos, então, à questão jurídica. Estes tipo de processos judiciais chegam a demorar décadas, mas há aqui questões essenciais, passaram-se quatro anos, o que é que já poderia ter sido feito? O que sabemos dos processos de Isabel dos Santos é o que sabemos dos tribunais portugueses.
Acerca dos processos que envolvem Isabel dos Santos falta fazer quase tudo, digamos assim. Houve, se quiser, uma “abertura” grandiosa com os vários congelamentos em Angola, curiosamente, os congelamentos foram feitos ao nível de processos cíveis e não criminais, foram arrestos por dívidas, e no processo criminal, Isabel dos Santos nem sequer foi constituída arguida. Tanto quanto sei, não se deu o primeiro passo num qualquer processo, que é a constituição de arguido, até para ela se poder defender e para a investigação avançar. Ao nível do processo criminal, em Angola, e em relação a Isabel dos Santos, está tudo por fazer. E isso é estranho.
Esse tudo por fazer pode dar espaço a eventuais negociações extrajudiciais?
Não me parece. Julgo que quando algumas, e vamos chamar-lhe facções internas do MPLA ou do Governo, começaram a agitar essa bandeira das negociações, o Presidente da República veio muito claramente dizer, no caso à Deustsche Welle (DW), que não há negociações…
Mas em política o que hoje é verdade, amanhã talvez…
É verdade, mas mesmo na perspectiva da negociação, tinha mais interesse ao Estado angolano ter um processo a pressionar Isabel dos Santos do que ter uma coisa que não se consegue definir o que é. Já percebemos que os processos avançaram muito mais em Portugal, onde já criaram vida própria, do que em Angola, o que também é estranho.
Com os processos a avançarem em Portugal duas coisas podem acontecer: não são provados os factos e o património é devolvido, ou são provados alguns factos e depois coloca-se a questão de quem fica com os activos.
Pode acontecer que se os processos em Portugal avançarem e os processos em Angola não avançarem tão rapidamente, e se a posição do Ministério Público português prevalecer, os bens acabem por reverter para o Estado português e não para o Estado angolano, o que não deixa de ser irónico no fim disto tudo. Mas pode acontecer. Como já aconteceu com a Efacec – e eu acho que aí o Estado português andou bem, estava a ficar com uma batata quente nas mãos, agiu rapidamente e resolveu o problema para Portugal, o não é criticável.
E tudo isto também tem a ver com a facto da colaboração judicial entre os dois países não estar a ser tão eficaz como devia?
Em Angola a estratégia da Procuradoria-Geral da República tem-se focado, sobretudo, na recuperação de activos. Foi criado o Serviço Nacional de Recuperação de Activos (em Dezembro de 2018), dirigido pela procuradora Eduarda Nascimento e que funciona em Angola com bastante celeridade, tirando esse departamento, o resto da Procuradoria-Geral parece-me um bocado sentada em cima do muro. Não vou falar de competência, não vou por aí, prefiro optar por uma apreciação mais política, parece-me que estão em cima do muro, avançam, mas não como demasiado zelo. Dá-me ideia de que o Procurador-Geral da República terá as suas indicações, mas não age com excessivo zelo. À excepção do Serviço de Recuperação de Activos, que é bastante zeloso, o que noto no resto da Procuradoria é de uma lentidão propositada.
Mas na questão da recuperação de activos versus PGR, digamos assim, tivemos mesmo o caso de Carlos São Vicente. A PGR, numa primeira fase, disse que não havia ilícitos, e, depois, é o serviço de recuperação de activos que vem dizer o contrário, e daí reivindicar os 900 milhões de dólares que estão numa conta na Suíça.
Penso que o caso se repete. Digamos que temos uma PGR a duas velocidades: temos o Serviço Nacional de Recuperação de Activos que se move rapidamente, e a PGR, que geralmente se move lentamente. É por isso que as coisas depois não batem. Vai-se recuperar activos mas não se percebe se há processo-crime ou se não há processo-crime. Vejamos o caso de Manuel Vicente, dá-se sempre a ideia de que Manuel Vicente está imune – já defendi que essa imunidade dos cinco anos é um mito, mas não vale a pena entrar por aí, porque a minha tese não teve vencimento, paciência –, mas o Serviço de Recuperação de Activos já recebeu vários activos de Manuel Vicente: as participações nos supermercados Kero, o edifício do CIF, o Hotel Intercontinental, há uma série de bens de Manuel Vicente que já foram recuperados. Não é verdade dizer que não há nada contra o Manuel Vicente, porque há. O que é estranho é que há apenas recuperação de activos, mas depois não se fala em processo nenhum, e as coisas deviam andar a par: a recuperação de activos e o processo-crime.
Mas isso não acontece só com o engenheiro Manuel Vicente, também nada sabemos dos processos-crimes que envolvem os generais “Kopelipa” e “Dino”? Esta questão da imunidade faz a diferença entre Manuel Vicente e os demais, ou também aqui temos de fazer uma leitura política?
Acho que a imunidade não se verifica porque essa imunidade dos cinco anos apenas se aplica a actos praticados no foro privado – imagine, um exemplo absurdo, que Manuel Vicente batia na mulher, era uma questão privada de violência doméstica, seria um crime e então aí sim, se ele tivesse feito isso quando vice-presidente teria direito aos cinco anos. Os actos praticados no exercício de funções, como actos de corrupção, não são actos praticados em foro privado e não beneficiam desses cinco anos, só está imune sendo vice-presidente, deixando de ser vice-presidente já não beneficia de cinco anos nenhuns, além do mais, a maior parte dos actos de que Manuel Vicente está a ser acusado ou que lhe são imputados, são actos enquanto presidente da Sonangol, anteriores à vice-presidência, e não tinha, nesse momento, qualquer imunidade. Falar da imunidade não tem qualquer sentido, é um erro jurídico crasso esta interpretação da imunidade no caso de Manuel Vicente.
Manuel Vicente, e do de vista jurídico, continua intocável?
Não acho, estão a tirar-lhe bens, já dizia o Maquiavel que as pessoas ficavam mais tristes se lhes tirassem os bens do que se lhes matassem o pai. Não acho que seja intocável, acho que, e neste caso, é só seguida uma interpretação jurídica errada, talvez para dar tempo ao Manuel Vicente para devolver bens. Não concordo com essa afirmação que a justiça é selectiva, não tem havido selectividade, o que não tem havido é um combate sistémico. Se nós admitirmos que toda a estrutura do MPLA era corrupta, e se o Presidente quando chega, ataca todos, ficava sem ninguém, acabava no segundo dia a sua presidência. Portanto, ele tem que tirar uma peça aqui, uma peça ali, uma peça acolá, para não se esboroar tudo uma vez.
Estamos então na questão dos pilares do poder, recentemente assistimos a algo complexo, à questão da Casa de Segurança, como é que viu este recente abalo provocado por um homem menor, o maj0r Lussaty, que põe em causa a Casa de Segurança e o regime?
O que se vai começando a compreender da estratégia contra a corrupção, é que ela de facto existe, mas atendendo a que toda a estrutura do estado era corrupta – há aquela frase, que acho que é do Filomeno Vieira Lopes “que se prendessem todos os corruptos, prendia-se o MPLA todo”, e a realidade é que João Lourenço parece que percebeu que não pode varrer tudo de uma vez, fica sem qualquer estrutura e acaba o mandato dele. Então dá ideia que vai escolhendo estrategicamente os alvos, e agora sentiu-se seguro para avançar para a Casa de Segurança. É mais um passo, é um passo longo e até de alguma coragem, e depois há aquele varrimento total, desde o general Pedro Sebastião a toda a hierarquia da Casa da Segurança.
Acha que esta pode ser uma oportunidade para mexer na peça que representa a Casa de Segurança no xadrez do poder em Angola?
Temos que ter nesta análise uma perspectiva normativa e uma perspectiva positiva. A perspectiva normativa é o que devia ser, positiva é o que é. Nós temos que ter que conta a lição do Gorbatchev, que se se quer reformar tudo ao mesmo tempo o que se acaba por ter é caos e não se reforma nada. Se o João Lourenço acaba com a Casa de Segurança, extingue a Casa de Segurança, reforma economia, combate a corrupção, todas essas forças vão contra-atacar e João Lourenço não tem defesa, acaba por cair. Para uma reforma ter sucesso, tem de ser feita passo a passo, pela escolha de objectivos prioritários. Talvez seja mais prioritário combater a corrupção e reformar a economia, essencialmente reformar a economia, e depois tratar desses aspectos, a que os marxistas chamavam da super-estrutura – o direito, o poder político, os processos democráticos – mas, primeiro, é preciso reformar a infraestrutura – a economia e combater a corrupção. Se se fizer tudo ao mesmo tempo…
Pode implodir com o regime.
(continua…)