Cultura

Em entrevista ao Público diz que vai votar na UNITA para evitar a putinização do regime angolano

Eis a entrevista do antigo primeiro-ministro, entre 1992 e 1996, de governos do MPLA liderados por José Eduardo dos Santos, ao diário português, na véspera das eleições gerais.

Depois de ter declarado o seu apoio à UNITA nestas eleições, marcadas para 24 de Agosto, o ex-primeiro-ministro angolano Marcolino Moco tornou-se alvo de fortes ataques, anónimos e com nome, vindos do lado do MPLA, o partido que governa Angola desde a independência e a sua família política. Em entrevista ao PÚBLICO em Luanda, o “mais velho” diz que não apoia a UNITA, mas que está de acordo com um projecto que visa acabar com a governação que existe hoje em Angola ao estilo Luís XIV: “L”État c”est moi” ou “um Estado de homem único”.

Porque resolveu apoiar a UNITA?

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Embora não faça muita diferença, é uma questão de forma, mas o que eu apoio é o projecto de Adalberto Costa Júnior que corresponde exactamente a um projecto que eu tenho defendido em livros, em conferências, que é acabar de vez com um Estado de homem único. Um Presidente ao estilo dos autocratas na Europa dos séculos XVI, XVII, como o Luís XIV dizia “L”État c”est moi”. O Presidente da República actual, muito mais pela prática, mas também consagrado na Constituição, não presta contas ao eleitorado, tem poderes excessivos, manda no executivo, nas forças de segurança, nos serviços secretos (às vezes, há dúvida, se não são os serviços secretos que comandam o sistema), na Justiça – o exemplo mais flagrante é o de nomear para a chefia do Tribunal Constitucional uma senhora que veio do Bureau Político [do MPLA], dando-lhe posse no outro dia e logo a seguir incumbi-la de tentar anular um segundo congresso da UNITA que havia eleito outra vez Adalberto Costa Júnior líder da oposição. Adalberto Costa Júnior foi declarado inimigo a abater numa luta até à exaustão. Tudo isso ostensivamente publicitado.

“O que eu apoio é o projecto de Adalberto Costa Júnior que corresponde exactamente a um projecto que eu tenho defendido, que é acabar de vez com um Estado de homem único”

Será um desastre para Angola se elegermos um projecto desses, que é o que o MPLA continua a apresentar. Com a ilusão para os menos avisados de que está neste momento em condições de resolver o problema da fome, está a realizar obras, está a fazer isto e aquilo, mas o problema está no tipo de Constituição que temos, tanto material como formal, e que só pode ser superado por um projecto igual ao que o Adalberto apresenta.

É isso que o vai levar a não votar no seu partido?

Contrariamente ao que muita gente pensa que deve ser, especialmente aqui em África, eu não pertenço a nenhum partido, nunca pertenci. Eu estive num partido até onde foi possível conciliar ideias, não posso permanecer colado a esse partido, sobretudo às ideias actuais, em que estamos perante uma situação em que é preciso optar: se vamos para uma putinização do regime angolano – só falta isso – ou se queremos corrigir o que vem mal feito desde 1975. Temos um Estado unilateral que vem desde a independência, devia ter sido corrigido em 1992, não foi possível; devia ter sido corrigido em 2002, no fim da guerra, mas, pelo contrário, a situação assumiu outros formatos – agora para voltar, não para um Estado de partido único, mas, mais grave, para um Estado de homem único. Esta é a razão para eu abraçar o projecto do Adalberto, que é o projecto da UNITA e da Frente Patriótica, como uma questão funcional, para eu contribuir para sair desta situação crónica que Angola tem vivido.

O Presidente João Lourenço desiludiu-o?

Tive dúvidas em 2017, por isso, empurraram-me para alguns gestos que eu não rejeitei, para dar o benefício da dúvida. Mas, no fundo, não me desiludi porque este regresso ao passado era uma possibilidade. Por exemplo, não se admitem moções de estratégia diferentes dentro do partido. Estas minhas ideias podiam ser discutidas dentro do partido, mas há uma cultura no MPLA, que a UNITA, por acaso, ultrapassou, em que não se admitem discussões fora da chamada estratégia do líder. Continuo a minha luta, e veja o conceito de luta no sentido mais suave e amoroso [risos], para contribuir para a transformação do país, corrigindo o erro congénito do Estado angolano, quando se decidiu que o país devia ser governado por um dos movimentos de libertação.

Depois da eleição de João Lourenço, quando aceitou o lugar no conselho de administração da Sonangol não receou, como veio a acontecer, que o seu silêncio estivesse a ser comprado?

Agora está mais do que comprovado que aquilo foi um acto de compra do silêncio. Na altura, tinha dúvidas, mas aceitei para deixar a bola nos pés dele e ele demonstrou que aquela predisposição de me oferecer o lugar era um acto de corrupção mesmo. Bastou eu dirigir algumas críticas, que não podia deixar de fazer porque ficaria demonstrada a minha compra.

Faço um pequeno resumo da minha discordância de João Lourenço: perseguição de quitandeiras, vendedoras que vivem exclusivamente daquilo por culpa do tipo de Estado que nós temos, altamente concentrado, sem projectos – foram as primeiras vítimas das acções do Presidente; desestruturação das poucas empresas que funcionavam aqui e que eram da Isabel [dos Santos] – é verdade que tinham sido construídas na base de valores desviados, mas numa circunstância de transição de poder, era preciso haver uma atitude de Estado, fazer preservar as empresas que funcionavam, mas o ódio, a necessidade de exibir algum poder, criou essa obsessão de paralisar as empresas ligadas à Isabel dos Santos e a outras pessoas que, curiosamente, foram todas recuperadas: Kopelipa, Dinho, já não falo do Manuel Vicente que foi salvo da Justiça portuguesa por razões diplomáticas; a última crítica que levou à minha exoneração foi quando o Bureau Político do MPLA exarou uma declaração racista contra o Adalberto, chamando-o de português, só faltou chamá-lo de mulato, que seria demais – eu escrevi um texto na minha página de Facebook muito claro sobre a necessidade de não admitirmos uma coisa dessas, sobretudo num partido como o MPLA que sempre se conotou com a filosofia da “arracialidade”. No dia seguinte fui exonerado pelo senhor Presidente, que não falou comigo, nem nada. Dizem que só apoio o projecto do Adalberto Costa Júnior por estar ressentido. É verdade que fiquei chocado, estranho seria que não ficasse, mas as pessoas sabem que este facto restrito não tem nada a ver com as minhas ideias que vêm de longe, do tanto que escrevo, do tanto que falo, de que não podemos ter esse tipo de Estado, Estado de homem único.

O MPLA de hoje com João Lourenço está melhor ou pior do que o MPLA de José Eduardo dos Santos?

O esquema fundamental é o mesmo, só que o José Eduardo era muito mais discreto, muito experiente, um grande político, ao cometer os seus erros, ao perseguir os seus adversários, como me perseguiu a mim, fazia-o de forma muito silenciosa, ameaçava através de pessoas. O Presidente João Lourenço distingue-se pela sua forma ostensiva de fazer o mesmo. Veja como ele chama em comícios “burros” a insignes individualidades angolanas, entre os quais dos maiores juristas do país, que subscreveram uma peça judicial contra o plano inclinado em que estamos nesta campanha eleitoral.

Falou há pouco da Constituição, acha imprescindível uma revisão constitucional?

Mais do que imprescindível. A Constituição tem um sentido formal e um sentido material. Em 1992, tínhamos uma Constituição formal muito boa, adequada ao nosso país. Previa uma Assembleia eleita à parte de um Presidente, com poderes repartidos, até havia primeiro-ministro, mas não faço questão. Previa direitos fundamentais, como uma Constituição moderna não deve deixar de ter. Mas se isso no plano material funcionou mais ou menos bem, apenas prejudicado pela guerra, a partir de certa altura começou a ser destruída, introduzindo-se uma Constituição não escrita que endeusava o Presidente, que não respondia por nada, era intocável, a mesma que foi depois foi consagrada constitucionalmente em 2010. Nós precisamos de fazer uma revisão constitucional dupla, uma revisão mental e uma revisão consolidada escrita que regresse a muitos dos aspectos da Constituição de 1992. Não se pode ter um Presidente que não presta contas ao eleitorado, que não presta contas ao Parlamento, comanda os tribunais, comanda a comunicação social e comanda os serviços secretos (para controlar os partidos políticos, para controlar e ameaçar os Marcolinos Mocos e outros).

José Eduardo dos Santos diz que não admirava o Mandela, que admirava o Lula; João Lourenço diz que admira o Mandela; mas nem um nem outro fazem algo parecido com o que fez o Mandela. O Nelson Mandela era um agregador e não um chefe de facção, nem dentro do próprio partido, muito menos perante outras entidades. O que João Lourenço faz é dividir dentro do partido, denegrir a imagem dos outros.

É por isso que não se trata de derrotar o MPLA, trata-se de derrotar o sistema que hoje é encabeçado por João Lourenço, que poderá continuar a enterrar este país, não obstante a situação calamitosa em que já nos encontramos.

“É por isso que não se trata de derrotar o MPLA, trata-se de derrotar o sistema que hoje é encabeçado por João Lourenço, que poderá continuar a enterrar este país”

Parece-me que tem receio que o Presidente João Lourenço se queira perpetuar no poder.

Isso está mais do que visto, basta observar quem ele propõe para vice-presidente. Quando se propõe uma figura tão apagada, que nem posso repetir o nome porque não sei [Esperança Costa], num regime do tipo autoritário, pessoal, vê-se que caminhamos para a perpetuação no poder, para uma Constituição putinizada. Dizem que o autoritarismo no Ruanda, por exemplo, está a trazer algumas benesses, não tenho a certeza, mas normalmente o autoritarismo, quando traz uma ou outra benesse, está a adiar problemas. Por isso, não acredito no autoritarismo benéfico.

Diz que João Lourenço está a dividir o MPLA, há pessoas dentro do partido que preferiam que o MPLA não ganhasse estas eleições?

Acredito que sim. Até poderia ir um pouco mais além, mas sabe que no MPLA há muito medo e eu não quero atormentar pessoas. Já tenho um problema na família, em que alguns andam muito atormentados, cheios de medo, mas com ou sem medo, a nossa vida um dia vai parar. Mas eu, Marcolino Moco, com o investimento que este país colocou em mim, não posso ficar calado perante esta situação. E não agir por meios pacíficos, mesmo que isso, temporariamente, crie algumas dificuldades a pessoas que estão ligadas a mim.

Há esse grande receio, mas preferia não falar disso. Quando vejo tanta agitação por causa de duas palavrinhas que eu disse para apoiar o Adalberto, nestas alturas tenho de ter muito cuidado a falar. E aproveito para apelar a que tudo se acalme, ganhe quem ganhar e que tudo seja resolvido da melhor forma. Estou aqui, não sou protagonista político, sou um mais velho a caminho de 70 anos, disponível para que, havendo qualquer problema, trabalhar do lado da pacificação. Não estou em nenhuma lista, não ajo por compromisso com nenhum cargo político-partidário, portanto, estou em grandes condições para actuar como mediador para o caso de haver problemas pós-eleitorais.

Agora, quem tem mais responsabilidades de esfriar o ambiente é o candidato-Presidente João Lourenço. Neste momento é ele o chefe de Estado e será ele o responsável pela transição se houver uma alternância.

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