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“O vencedor perdeu” foi como a Economist titulou a sua análise às eleições gerais em Angola, realizadas no mês passado e envoltas em séria controvérsia desde então. Reconhecendo o desfasamento entre os resultados tidos como oficiais e o sentimento da sociedade civil, expondo o domínio do MPLA sobre o Tribunal Constitucional e a Comissão Nacional Eleitoral, a publicação inglesa traça um retrato sombrio da nação africana. Um regime miserável com um povo na miséria, resumindo.
O criticismo da revista centenária não fica por aí. A parca reação internacional ao infortúnio dos angolanos é, com inteira justiça, denunciada. A União Europeia, que foi “pouco exigente”. Portugal, que está “manifestamente feliz por lidar com o diabo que conhece e com o qual lucra”. Os governos ocidentais, “que não estão com disposição para importunar um produtor de petróleo em nome de Direitos Humanos ou democráticos”.
Tudo isso foi – e é – verdade.
Karen Bass, presidente da Comissão de Assuntos Africanos no Congresso dos Estados Unidos, saudou a reeleição de João Loureço como oportunidade “para aumentar o comércio americano e o investimento público-privado” entre os dois países. O secretário de Estado dos EUA, mais cinicamente, cumprimentou “os milhões de angolanos que demonstraram o seu compromisso com a democracia” – infelizmente adiada em Angola com a sua conivência. O primeiro-ministro português felicitou igualmente o líder do MPLA, no Twitter. João Lourenço tomou posse esta semana.
Trata-se, portanto, de uma tragédia nacional sob aplauso internacional. Não de um golpe de Estado, pois Adalberto Costa Júnior prossegue pacificamente o processo de credibilização institucional da UNITA, mas de um golpe do Estado. Longe da imprensa estrangeira e dos gabinetes das embaixadas, é fácil confirmá-lo. O acórdão do Tribunal Constitucional de Angola sobre o recurso apresentado por outro dos partidos da oposição (a CASA-CE) evidencia-o de forma estridente. Anexa à decisão do tribunal, que foi favorável à CNE angolana – isto é, ao regime -, consta uma declaração de voto de uma juíza-conselheira que diverge dos seus dez colegas.
Corajosamente, Josefa Antónia dos Santos Neto escreve que não podia ignorar o facto de as conclusões do acórdão “terem resultado da inexistência de um confronto entre as atas-sínteses em posse da Comissão Nacional Eleitoral e as que a recorrente (a CASA-CE) submeteu”, instando mesmo a CNE angolana “a publicar as atas-sínteses de forma a dissipar todas as suspeições à volta do processo eleitoral que, como sabido, são públicas e notórias”.
“A justiça não pode produzir injustiça”, conclui a sua declaração de voto, citando Platão, em contraste total com o posicionamento quer do Tribunal, quer da Comissão Eleitoral, quer do MPLA.
Além do patriotismo de tal ato de bravura, as palavras de Josefa Neto refletem algo impossível de ignorar: que o Tribunal Constitucional angolano está a pronunciar-se sobre os resultados eleitorais de Angola sem os seus juízes terem acesso às atas da CNE que sustentam esses resultados e que, coincidentemente, ninguém viu. O tribunal está a decidir tendo como base o vazio, o que é o mesmo que dizer que João Lourenço foi reeleito com base em nada – que não a vontade do MPLA.
Que a democracia portuguesa, o poderio norte-americano e a diplomacia da União Europeia se verguem perante esta infâmia, perante um povo separado da liberdade pelas armas de um partido, constitui uma mancha de difícil remoção. Em Angola, como sentenciava a Economist, o vencedor perdeu.
Mas essa derrota também é nossa.