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A mancha humana da magistratura judicial

Há uma piada muito frequente entre os médicos da especialidade de Otorrinolaringologia, quando se pergunta como é que se tira a cera dos ouvidos, eles respondem: com o cotovelo.

A prisão de Silvano António Manuel é, provavelmente, dos maiores escândalos da era do Presidente João Lourenço – esqueçam a Isabel dos Santos ou o major Pedro Lussaty -, a prisão do sobrinho do juiz-presidente do Supremo Tribunal expõe as podres entranhas da Justiça ao mesmo tempo que, e paradoxalmente, tenta fazer justiça.

Definitivamente, o juiz-presidente do Supremo Tribunal não tem condições para continuar no cargo, ele é, mais do que nunca, juiz em causa própria.

A prisão de Silvano António Manuel é reflexo do pântano em que se transformou a Justiça angolana, arrastando toda a magistratura feita (também) de gente decente que só se pode sentir profundamente incomodada ou mesmo envergonhada.

Espera-se que haja no Conselho Superior da Magistratura Judicial um mínimo de decência e que este órgão possa agir junto do Presidente da República no sentido de fazer a indispensável limpeza, não só da Justiça, mas do próprio regime.

Durante meses, Silvano António Manuel fez o trabalho sujo com a cumplicidade do tio, o juiz-presidente do Supremo Tribunal. Quando o fedor se tornou nauseabundo, o tio sacudiu o sobrinho.

E esta semana ficou a saber-se que a pedido da Procuradoria-Geral da República, o Serviço de Investigação Criminal (SIC) deteve Silvano António Manuel quando ele, alegadamente, tentava deixar o país.

O sobrinho do juiz-presidente do Supremo Tribunal tentou durante meses negociar os termos da punição do antigo ministro dos Transportes Augusto da Silva Tomás, ou seja, o sobrinho do juiz-presidente do Supremo Tribunal sentiu-se confortável para negociar a liberdade de alguém.

Os factos: encarcerado desde Setembro de 2018, e num processo de corrupção conduzido pelo juiz Joel Leonardo, ao antigo ministro dos Transportes podia ter sido concedida a liberdade condicional a meio do ano, tal como veio acontecer no final do ano. Em Julho de 2020, a sua advogada, Ana Paula Godinho, denunciou que Augusto Tomás estava a sofrer tortura psicológica e outro tipo não mencionado de violações dos seus direitos.

Sabe-se agora que, alegadamente, alguém tentava negociar a sua liberdade. Esse alguém era Silvano António Manuel, que não sendo magistrado, só o poderia fazer com o respaldo de um, e no caso, o tio, juiz-presidente do Supremo Tribunal.

A gravidade desta questão é monumental, abala, tal sismo seguido de tsunami, todas as estruturas da magistratura judicial angolana.

Mas há ainda mais factos, no mínimo inquietantes, que dão conta de como a Justiça é coisa alheia ao Supremo Tribunal.

A 4 de Junho de 2022, o Tribunal Supremo terá reconhecido que atingida metade da pena, e dado o seu comportamento na prisão, Augusto Tomás podia sair em liberdade condicional. Ou seja, o antigo ministro dos Transportes fica na expectativa de passar o resto da sua pena fora da prisão.

Mas enganou-se e enganaram-no.

Em 27 de Setembro, o juiz o Daniel Modesto Geraldes – primo de Joel Leonardo – indeferiu o pedido de liberdade condicional de Augusto Tomás alegando que pena “é branda para condutas tão graves” como a assumida pelo antigo ministro dos Transportes e, quase como num segundo julgamento, escreveu “a libertação deste tipo de criminosos a meio da pena não se mostra de todo compatível com a paz social e tranquilidade pública que se exige para a concessão da liberdade condicional”.

Se o juiz Daniel Modesto Geraldes tiver o mínimo de bom senso, por esta altura já deve estar arrependido de usar um tom de inquisidor-mor. Ou não, podemos pensar que Modesto Geraldes foi cúmplice de uma chantagem que envolvia milhões de dólares e em que estavam em causa direitos, liberdades e garantias de um cidadão que a Justiça já tinha julgado e condenado.

Finalmente, e com a ano de 2022 quase a terminar, os advogados de Augusto Tomás conseguiram que o Tribunal Supremo revertesse a decisão de Modesto Geraldes, e a Augusto Tomás foi concedida a liberdade condicional. O próprio viria a confirmar que estava a ser vítima de exortação, tendo citado nomes alegadamente ligados a uma rede liderada pelo juiz-presidente do Supremo Tribunal.

“Ao tomar conhecimento de que a rede foi descoberta”, escreve o Clube K, o juiz-presidente do Tribunal Supremo fez sair um despacho, no dia 1 de Fevereiro, afastando o sobrinho e afastando-se de quaisquer actividades com ele relacionadas.

Mas é tarde. Silvano António Manuel feriu o tio de morte, alguém que diga isso ao juiz-presidente e que lhe diga ainda não tem condições para continuar no cargo. Haverá entre os magistrados angolanos muita gente com vontade de o fazer. Coragem!

Várias fontes revelaram ao Clube K que desde há algum tempo que corriam evidências de tráfico de processos no restrito círculo do juiz-presidente do Tribunal Supremo, e Silvano Manuel era então o homem que fazia o trabalho sujo.

Nas listas de eventuais “extorquidos” estão também Manuel Rabelais e o general Higino Carneiro. O primeiro terá recusado quaisquer pagamentos, o segundo, que até Maio de 2022 aguardava julgamento por alegada prática de crimes de peculato, nepotismo, tráfico de influências, associação criminosa e branqueamento de capitais, foi “despronunciado”, num processo que andou meio perdido mas que acabou por ser uma decisão do Joel Leonardo, que assumiu que o fez devido “a pressões políticas”.

Será? Ou é melhor continuar a seguir o dinheiro…

Voltamos então à piada dos “otorrinos”, se o Presidente da República e o CSMJ não fizerem nada, estão, então, a usar o cotovelo para tirar a cera dos ouvidos.

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