Existe um ditado xangan que diz o seguinte: “akuxurha ka n”gwendza ikunhlata” (vomitar é a prova de que o solteirão está satisfeito). O significado é complicado. O solteirão é por definição uma pessoa livre de obrigações sociais. Por isso, leva uma vida teoricamente sem controlo e, em resultado, só se dá conta das coisas quando os efeitos dos excessos chamam a sua atenção. Há uma maneira de fazer valer esta sabedoria popular nos dias de hoje. Nenhuma condição, por muito boa que ela seja, produz os efeitos que fazem dela boa se ela não está sujeita a nenhum controlo.
Amartya Sen, um economista e filósofo indiano que ganhou o Prémio Nobel de Economia nos anos noventa do século passado, ficou famoso, também, por causa dum teorema (controverso) que ele enunciou sobre a relação entre democracia e fome como inanição. Nos seus estudos sobre grandes fomes na Índia e China ele chegou à conclusão de que numa democracia a fome (como inanição) não é possível. Ele demonstrou esta tese a partir da constatação segundo a qual a Índia, que desde a sua independência é uma democracia, nunca tinha sofrido fomes, enquanto a China, sobretudo, sob a liderança de Mao Tse Tung, havia. Segundo Sen, a diferença devia-se à existência da liberdade de expressão e da competição política que fazia com que na Índia os governos respondessem (por medo de perder eleições) enquanto em regimes autoritários como o chinês esse incentivo faltava.
A tese tem sido discutida de forma bastante controversa, muitas vezes com pouca atenção ao que Sen disse. Assim, o facto de haver desnutrição ou muita gente na Índia sem acesso a alimentação suficiente é usado como algo que infirma a tese. Outras críticas concentram a atenção no facto de a China nos últimos anos ter conseguido “resolver” o problema da fome. A tese de Sen é mais sofisticada do que isto. Ele não diz que democracias são mais eficazes no combate à fome. Ele diz apenas que elas evitam melhor grandes crises de fome (como inanição) do que regimes autoritários. A fome de Mao ceifou a vida a 30 milhões de chineses.
Não me socorro de Sen para explicar os vómitos do solteirão. Faço-o para chamar atenção a um aspecto interpretativo que me parece de grande importância. A democracia é, para mim, a todos os títulos o melhor sistema político pelo menos para o mundo em que vivemos. Só que não é por nos chamarmos uma democracia que o sistema político vai funcionar como tal. A democracia em si não vai produzir os bens políticos que dela esperamos. Na verdade, o segredo do funcionamento da democracia está na forma como o nosso compromisso com a democracia se manifesta através da maneira como lidamos com o que nela é disfuncional. Vou tentar explicar isto melhor com recurso ao principal problema que o País enfrenta hoje e que não merece a atenção do governo.
Cabo Delgado está em chamas. Vergonha das maiores vergonhas, os “malfeitores” até tomaram de assalto a famosa base “N”Tchinga” da luta armada de libertação nacional. Os herdeiros das FPLM fugiram de lá em debandada. Enquanto isso, o comandante geral da polícia andava pelas bandas da província a ensinar aos seus homens a usar a máscara para se protegerem da Covid-19. Em Maputo, o governo estava bízi a corrigir as suas próprias decisões tomadas dias antes sobre um outro assunto também premente, mas que documenta a sua selectividade: Covid-19 afecta a todos nós, incluindo aos membros do governo, enquanto Cabo Delgado é assunto de quem lá vive. A tragédia de Cabo Delgado acontece à vista de todos nós porque existe liberdade de imprensa e de expressão. Se a tese de Sen vale para alguma coisa, devíamos, então, esperar que com estes mecanismos democráticos a violência em Cabo Delgado não alcançasse as proporções que está a alcançar porque, teoricamente, não há como esconder isso e, também, pode custar eleições ao partido no poder.
A tese de Sen continua válida. O que ela nos diz, porém, é que a nossa democracia é estruturalmente deficiente. Não é que não soubéssemos isso. Mas o facto de sabermos que Cabo Delgado acontece e de nos indignarmos sem, contudo, lograr quebrar o silêncio do governo sobre o assunto é revelador do tamanho dessa deficiência. É quase como constatar que, para todos os efeitos, não somos uma democracia. Há paralelos interessantes entre a atitude do governo em relação aos bandidos armados da Renamo nos anos setenta e aos malfeitores de Cabo Delgado de hoje. Em relação aos BA”s o governo não fechou a boca, mas contou histórias, umas plausíveis, outras fantásticas, que procuravam desviar a atenção do principal desafio político que a violência gratuita da Renamo levantava, nomeadamente a questão da prerrogativa de poder dos libertadores da pátria. Hoje nem a boca abre, mas é também evidente que há um problema político que se procura esconder, nomeadamente a impossibilidade de exigir contas de quem detém o poder.
E tal como os bandidos armados de então que se fartaram de chacinar indiscriminadamente para depois desenvolverem um discurso político, os malfeitores de Cabo Delgado agora falam política e apresentam-se como pais de alguma coisa. Até o Nyongo no centro já fala política. O problema dele já não é a desmobilização, mas sim a delapidação dos recursos por estrangeiros. Ou por outra, temos um governo que silenciosamente está fortemente empenhado em produzir condições para a inviabilização do País. Lá do alto do seu alheamento na companhia dos bobos da corte que sussuram aos seus ouvidos que é tudo normal, os críticos é que são um problema porque odeiam o governo (como se houvesse a obrigação cívica de amar quem governa), o governo, pelo seu silêncio, constitui-se como o principal responsável pelos malfeitores em Cabo Delgado e pela junta militar no Centro. Não é a exclusão social no Norte, nem a desmobilização no Centro que explicam o que se passa. O que explica o que se passa é a ideia que os detentores de poder na nossa democracia têm de que podem agir sem nenhuma prestação de contas.
Portanto, o nosso problema é a própria democracia. A nossa democracia. E a prova disso é o silêncio do governo. Melhor demonstração do profundo desprezo que se tem pelo povo não pode existir. E numa democracia desprezar o povo teria consequências. Na nossa não tem, logo, temos um grande problema. Pior ainda é que quando a democracia está de barriga cheia ela vomita de forma violenta ceifando vidas.