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A complacência Africana – Elísio Macamo

Deixei alguns colegas aqui da minha universidade perplexos com uma resposta que eu dava a eles quando me perguntavam o que eu achava da vida na Suíça. Eu dizia que era esta sensação de acordar de manhã e saber que a Suíça ainda é uma democracia. Não entendiam, ou quando achavam ter entendido, pensavam que eu estivesse a dizer que os suíços são super-democratas. Não era isso.

Eu estava apenas a destacar a fragilidade da democracia e a tentar chamar a sua atenção para o perigo de dar as coisas por adquirido. O desastre que tem sido a experiência com a democracia de países como os africanos leva muitos ocidentais à complacência e àquela atitude de pensarem que basta instalar a democracia que ela vai funcionar. As grandes dificuldades que a Europa tem tido em lidar com a migração e a rapidez com que políticos e sectores da população mandam certos princípios às favas para protegerem os seus interesses privados tem mostrado até que ponto a democracia é um bem frágil.

É isto que os eventos de ontem no Capitólio nos EUA estão a documentar. Não estão a documentar a “farsa” da democracia como li algures. Não estão a mostrar a hipocrisia dos americanos. Não estão a dizer que existem alternativas à democracia. Aquelas pessoas que assaltaram o Capitólio mostram aquilo que nós em África sabemos por experiência própria, nomeadamente o que pode acontecer quando a democracia falha. Por isso, para mim este não é o momento de nos rirmos dos EUA, ainda que eles mereçam e que, no fundo, seja hilariante o que lá está a acontecer tendo em conta a forma altiva como eles têm promovido a agenda democrática no mundo.

Este é um momento de alta preocupação. Não há absolutamente nenhum espaço para a complacência. Convenhamos. Não existe sistema político hoje capaz de garantir as liberdades individuais e proporcionar o bem-estar – sobretudo, esta combinação – melhor do que a democracia liberal. Mesmo quem defende a opinião contrária está mais seguro defendendo-a numa democracia liberal do que na China, Rússia, Cuba ou Moçambique. Por isso, quando vejo um país poderoso como os EUA a braços com a fragilidade da democracia fico angustiado.

Vamos fazer piadas sobre enviar forças de manutenção de paz, etc. aos EUA, mas ao contrário do que acontece nos nossos países quando a democracia falha – e é quase sempre – aquele país vai se recompor sem ajuda externa, vai restabelecer a ordem e vai reabilitar as instituições. É até bem possível que Trump seja levado à justiça. Apesar de ser tarde, alguns membros do governo demitiram-se em protesto contra a atitude do seu Presidente. As forças de defesa e segurança responderam ao dever de proteger a constituição, não ao Presidente. Os representantes do povo estão a reflectir sobre o que fazer para reforçar as instituições, etc.

Tudo isto acontece porque ao contrário de alguns de nós a relação que muitos americanos têm com a democracia não é funcional. É normativa. Infelizmente, só vi as discussões na CNN – um canal hostil ao Presidente Trump – mas mesmo lá deu para perceber que a reflexão que se faz não é sobre a pessoa do Trump. É sobre o perigo que essa pessoa representa para os valores que as instituições democráticas representam. Eu acho engraçado ver pessoas que não acreditam na democracia a se rirem dos EUA. Neste momento, aquele País está a dar-nos licções valiosas sobre a democracia!

A única coisa que me “agrada” neste cenário é a oportunidade que estes eventos nos dão, nas ciências sociais em particular, para revermos algumas das nossas abordagens. A sociologia política de África padece muito da idealização do Ocidente. O que quero dizer é que confundimos o ideal da democracia com a realidade actual das democracias mais fortes neste momento. Essa confusão torna-nos insensíveis à fragilidade da democracia como instituição. Quando ela não se impõe nos outros países, a sociologia política corre logo para pensar que o problema sejam os africanos, não a própria instituição.

É isto que temos que rever para introduzir no estudo de processos políticos uma dose saudável de historicidade que seja sensível ao facto de que toda a intervenção em meios sociais vivos tem consequências imprevisíveis. Espero que os meus colegas estejam atentos e estejam a tirar as devidas ilações.

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