Entre as vozes mais eloquentes dos antigos membros do grupo de jovens presos pelo governo de José Eduardo dos Santos em 2015, conhecidos por 15+2, está Sedrick de Carvalho, a viver hoje em Portugal numa espécie de exílio voluntário. E foi aí que o jurista, escritor e jornalista deu uma entrevista, que transcrevemos.
Como vê estes últimos cinco anos e o que prevê acontecer no dia das eleições?
Estes últimos cinco anos foram um tempo de confirmação de tudo aquilo que, pelo menos eu – porque muitas pessoas estavam com muitas expectativas positivas – e mais um pequeno grupo do qual faço parte, sabíamos que seria uma governação que apenas iria reforçar uma manutenção pura e dura do poder e não [seria] uma mudança de governação no sentido positivo. Era a expectativa de muita gente, e fiz questão várias vezes de dizer que esperava estar errado e que essas pessoas estivessem certas. Mas infelizmente o tempo provou que foi mais do mesmo, e até em muitos aspectos foi muito mais do mau a que já se estava habituado. Entre vários exemplos que se podem dar, eu tenho focado no controle que em cinco anos se verificou na comunicação social no país. É um exemplo acabado de como estes cinco anos representaram o mesmo do mesmo, com um reforço maior no controle e cerceamento das liberdades em Angola.
Esse agravar dos ataques à liberdade de expressão e, em particular, à liberdade de imprensa, a que se deve?
Verifica-se este agravamento, para já na dificuldade de acesso aos órgãos de comunicação por parte dos atores. Estamos a falar aqui tanto dos atores da sociedade civil, como dos atores políticos, neste caso os partidos da oposição, que estão com muito mais dificuldades em exprimir-se livremente. Essa dificuldade resulta exatamente do controle que o governo angolano, chefiado por João Lourenço, reforçou dos órgãos de comunicação, nacionalizando muitos órgãos privados, alguns já até na esfera de influência de pessoas ligadas ao partido MPLA. Ao passar, houve uma transferência. Ou seja, os órgãos que passaram a ser públicos passaram também a obedecer aos interesses de quem manda na estrutura da comunicação social, que em Angola é o Governo, por meio do Ministério da Comunicação Social.
“Em vários pontos do país, a juventude começou-se a organizar. Mesmo que muito informalmente, começaram a organizar-se a seu modo e a exprimir-se e a envolver-se nos assuntos [políticos].”
Bem recentemente, João Lourenço deu uma entrevista à RTP onde fez questão de deixar claro que este acesso à comunicação está dependente de uma autorização, de um capricho por parte de quem dirige esses órgãos. Referiu, por exemplo, de uma forma muito à vontade, que caberá ao líder do partido na oposição pedir, mendigar por uma entrevista num órgão público e não o contrário. Não é o órgão público a ir atrás de indivíduos que tenham relevância política ao nível do país, tem que ser ao contrário. E João Lourenço fez esta declaração com muito à vontade porque acredita que tem que ser assim: os órgãos de comunicação pertencem ao Governo e a cedência de um espaço depende de um pedido. Quando não é assim que deve funcionar. Isto revela imenso o quanto as liberdades ficaram cerceadas. Na sociedade civil também se colocam as mesmas questões. Com estes órgãos de comunicação social privados começaram a existir mais espaços para se exprimirem, mas, com o encerramento desses órgãos e com a passagem para a esfera pública, têm mais dificuldade. Recentemente, há mais um exemplo que posso apontar. Um órgão que continua privado, o portal A Denúncia, mainstream, que funciona a nível do YouTube, tem um canal muito dinâmico, que até às vezes se confunde com um canal de televisão, tem uma estrutura noticiosa e tudo mais. E este órgão privado, sem grande estrutura financeira, a fazer muitos sacrifícios para conseguir fazer um trabalho independente, o governo angolano simplesmente intimidou-o a encerrar com um processo judicial. São pequenos elementos, mas bastante graves na questão da liberdade de imprensa, porque ficam mais limitados. Depois há, claro, no âmbito do exercício das liberdades de expressão e de imprensa, o uso das redes sociais, que também constitui um certo problema da parte do governo angolano, que permanentemente tem estado a instaurar processos judiciais por utilização. Fazem aquelas acusações de difamação e calúnia por [as pessoas] se exprimirem livremente a partir das redes sociais. Foram criadas leis para criminalizar quem se consegue pronunciar por estas vias, mas é tudo um sinal de que há cada vez uma maior necessidade do governo de controlar. Que também revela imenso a veia totalitária por parte do MPLA.
Há uma geração que nos últimos dez anos tem tido acesso às redes sociais e a uma maior consciencialização política. Há aqui uma possível dissonância entre uma geração que tem um apetite por algo diferente, contra um governo a ver-se cada vez mais debilitado neste panorama social?
Há uma grande influência do caso Angola 15+2 na juventude angolana, que passou a olhar para este caso como um exemplo de coragem e ao mesmo tempo de que é possível enfrentar, e é necessário enfrentar, as autoridades com alguma liberdade e ainda assim manter-se íntegro. Porque acho que um dos aspetos muito notórios no processo foi as consequências todas que surgiram em função do processo não terem deixado que os jovens e as jovens que estiveram envolvidos fossem cooptados pelas estruturas de governação. E esta juventude ganhou então, de certo modo, alguma esperança de que é possível fazer o mesmo (contestar) sem vergar. E o resultado desta firmeza é que, em vários pontos do país, a juventude começou-se a organizar. Mesmo que muito informalmente, começaram a organizar-se a seu modo e a exprimir-se e a envolver-se nos assuntos [políticos]. E é este envolvimento que tem inclusive gerado mais contestação. Com mais contestação também se tem gerado mais repressão, mais tentativa de controle. Porque ao mesmo tempo que se faz essa tentativa de controle, também a juventude mais cria mecanismos para se exprimir fora dos controles. E tudo isto é positivo. Agora, realmente o problema é que esta juventude esbarra nesse conflito geracional. Porque há uma estrutura que é dirigida por uma geração, que nem sequer compreende os próprios conceitos que eles mesmos colocaram na Constituição, nas leis que têm gizado. Esta é a parte que é curiosa e eu, em tribunal – e penso que também inclui no livro sobre o processo [Prisão Política, 2021] -, referi que esta é uma juventude que apenas quer exercer na prática o que está determinado que é para exercer (na constituição). Por isso digo que são filhos da democracia formal, que só querem exercer a democracia formal, querem materializar essa democracia. Esta parte da materialização tem encontrado muitos obstáculos.
“Eu sabia que o MPLA ia cerrar fileiras em torno do novo chefe, porque está sempre em causa a sobrevivência de um grupo.”
Esta geração de mais velhos? Eu tenho discutido esta questão com vários amigos em que muitos dizem: “Eles estão a fingir não saber o que é a democracia.” Eu digo: eles não estão a fingir não saber o que é a democracia. Eles de facto não sabem o que é a democracia. Não é uma questão de fingimento. Por mais que ponham as leis no papel , é uma geração em que nem sequer a letra da lei é de cumprir. Não compreendem, não interiorizaram que a lei é algo que transcende os nossos propósitos pessoais. A lei é um contrato social, político, cultural a vários níveis a que devemos todos nos sujeitar. Mas queria referir o seguinte: esta mesma geração está a fazer com muita eficácia uma transferência desta forma de agir perante este desprezo pelas leis para a nova geração. Para a minha geração que faz parte da estrutura governativa. É assim que nós temos – e atualmente João Lourenço, o chefe de Estado, tem estado inclusive a levantar esta bandeira – um governo onde tem muita juventude. Mas essa é uma juventude que pensa igual e às vezes até pior que a geração dos mais velhos que estão de saída. Tenho dito, assim meio a brincar, que é muito curioso como temos, ao nível da nossa estrutura governativa um indivíduo que a dado momento chega mesmo a pronunciar que o oxigénio que se respirava em Angola era graças ao senhor presidente da República. É um jovem superdotado em termos de competências académicas, teve bons reconhecimentos onde se formou, mas chega a este ponto. E agora na gestão da pandemia onde tivemos um Chefe da Casa Civil do Presidente da República [Adão Francisco Correia de Almeida] a elaborar leis e a defender leis de cerceamento das liberdades invocando a pandemia, quando depois se foi ver que constitucionalmente se invocava um elemento que era o chamado “estado de emergência”. Mas a nossa Constituição não prevê estado de emergência para o país, prevê estado de guerra, estado de calamidade, mas não prevê estado de emergência. E usava esta figura jurídica. Mas são estas pessoas que temos no governo. E esta é uma situação muito mais perigosa. E por isso daqui a pouco nós vamos ter? Daqui a pouco, nem tanto porque já está a ocorrer, até porque João Lourenço já é de uma geração abaixo da de José Eduardo dos Santos? Mas esta [geração] está com a mesma dinâmica, o mesmo pensamento político. E este pensamento político depois dita tudo o que ocorre no país, porque a política em Angola determina tudo. Infelizmente não há grande esperança que esta geração nova que está no MPLA faça muito diferente exatamente porque a transferência de pensamento político tem sido eficaz internamente.
E na restante nova geração? Vê uma vontade de criar um multi-pluralismo político ou vê esta juventude, em particular aquela que se começa a organizar, este movimento só enquanto expressão individual, sem uma componente partidária?
Nesse aspecto Angola tem sido sempre muito bem servida. Ou seja, sempre houve um multi-pluralismo permanente, com várias discordâncias, até mesmo dentro dos partidos. A começar nos dois maiores partidos, UNITA e MPLA, internamente também houve sempre muita divergência de ideias, várias sensibilidades políticas e ideológicas. Mas também internamente dentro dos dois partidos houve sempre muita retaliação a quem destoasse, digamos assim, da linha principal. A nível da sociedade também se verificou sempre isto, uma multi-pluralidade. Houve sempre muitas sensibilidades em Angola, felizmente desde o início. Felizmente porque várias ideias são sempre muito bem vindas para o crescimento de qualquer país. [Angola] Sempre teve muita influência de várias ideologias, mas não encontram eco ao nível dos dois principais partidos. Porque ao mesmo tempo os dois partidos continuam a ser fiéis à sua matriz ideológica e repressiva, que é não permitir que haja um pensamento diferente. Há apenas um pensamento, o pensamento é sempre a lógica do chefe. Daí que jovens angolanos com um pensamento que difere dos partidos na oposição ou então do principal partido da oposição – vamos colocar aqui esse binómio – são ostracizados. Não têm espaço nas estruturas controladas pela UNITA. Continua a não existir sensibilidade por parte destes partidos para aceitar essa multi-pluralidade que já há ao nível do país e da sociedade.
E não há espaço para se criar algo novo?
Penso que atualmente há respostas para isso. Há vontade para que se crie isso, vontade por parte da juventude em criar os seus próprios mecanismos ou estruturas. Mas há uma estrutura legal montada em Angola que não dá muito espaço para que existam outras instituições partidárias e até mesmo sociais, organizações cívicas, com independência suficiente para fazer frente aos dois maiores partidos. A estrutura legal que foi criada não permite que surjam. Às estruturas da sociedade civil, associações e tudo mais, que consigam se estruturar de uma forma que represente uma ameaça ao nível do poder político, são-lhes bloqueadas as contas bancárias. Estando bloqueadas, bloqueia-se logo também o seu programa de execução e começa a enfraquecer as instituições.
“Jovens angolanos com um pensamento que difere dos partidos na oposição ou então do principal partido da oposição – vamos colocar aqui esse binómio – são ostracizados.”
São esses bloqueios e impedimentos que são colocados a uma juventude que está ávida, sim, e tem inclusive programas ambiciosos que poderiam reverter este quadro, mas que não consegue pôr em pleno funcionamento por causa deste bloqueio. E aqui cito que também há alguns partidos na oposição, nomeadamente a UNITA, que também têm todo o interesse que assim seja. A lógica do binómio permanece. É uma lógica que favorece o MPLA, o MPLA precisa de ter um arquirrival, uma estrutura paralela que serve para justificar que exista uma chamada oposição no país.
Fale-nos um bocadinho do aspecto que muitas vezes refere na comunicação social, de todos estes elementos virem alimentar a fraude eleitoral.
Há um artigo da jornalista Luzia Moniz que fala da “fraude geral” . Há toda uma estrutura montada, anterior às eleições, que constitui fraude. Há um controle da comunicação social que é uma fraude em si. Todas as estruturas em que há representação partidária, ela é uma representação proporcional à que existe no parlamento. Então há uma transferência de todo um comportamento, normativo e regulamentar, de como são decididas as questões ao nível dessas estruturas. Por exemplo, ao nível da Comissão Nacional Eleitoral. Se há um diferendo em que é preciso ir a votação, já se sabe quem ganha. Porque quem detém a maioria naquela Comissão Nacional Eleitoral é um partido, a representação é partidária. Os partidos na oposição, infelizmente, também se têm servido dessa estrutura. Beneficiando, apoiando, colocando lá os seus indivíduos, o que em Portugal se chama muito de jobs for boys, mas não se preocupando com a substância daquele órgão. E por isso tem perdido permanentemente.
“Há um movimento cívico identificado como MUDEI que tem feito muito trabalho de modo a demonstrar, na prática, como a fraude pré-eleitoral continua a ser feita.”
A entidade que regula a comunicação social também é uma entidade que funciona na lógica da representação partidária. E, infelizmente, estão-se a preparar eleições mas todos os elementos de fraude já foram previamente concretizados, estão definidos, e há neste momento em curso apenas uma consumação de umas pequenas coisinhas. Aliás, estas últimas coisinhas que estão a ser feitas, servem muito para desviar as atenções de toda a fraude que já houve. Um dos aspetos que tenho referido, e que nem sei porque ninguém mais o foca, é a comissão inter-ministerial criada para conduzir as eleições que se realizam. É uma comissão composta por vários ministérios. E todos os ministros são pessoas interessadas nas eleições, são membros do MPLA de destaque. Em 2017, esta mesma comissão também foi quem organizou as eleições. Quem era o ministro da Defesa que também fazia parte desta comissão? Era o próprio presidente da República. João Lourenço era parte da própria estrutura que organizou as eleições. Este ano a mesma coisa. Daí que é fácil depois trazer a Comissão Nacional Eleitoral no fim do processo para validar tudo o que essa comissão fez. Mas a própria CNE quando vem validar não tem o poder de averiguar, de descortinar determinados atos. Não tem esse poder. Mas mesmo que tivesse, no momento da tomada dessa decisão vai esbarrar com a maioria parlamentar que lá está representada, que é sempre o MPLA. Mas há muitos outros aspetos que se podia apontar aqui. Há um movimento cívico identificado como MUDEI que tem feito muito trabalho de modo a demonstrar, na prática, como a fraude pré-eleitoral continua a ser feita. E, curiosamente, os partidos na oposição não têm sabido aproveitar. São os principais interessados, ou interessados porque querem chegar ao poder, supostamente, mas claro que os mais interessados somos nós, o povo, que quer ver uma governação diferente e melhor no país.
E quais são as suas sugestões?
A juventude, sobretudo, tem estado a propor já às forças na oposição uma medida diferente, uma atuação diferente, com o propósito de experimentar algo diferente para obter um resultado diferente. Infelizmente, os partidos da oposição não têm ouvido. Este ano adotaram, vá lá, metade do que a juventude tem estado a propôr que é nomeadamente a metade da questão da coligação eleitoral. A oposição ir coligada. Três partidos, ou dois partidos e um projeto de partido, vão [este ano] coligados, liderados pela UNITA. Mas é metade porque, em suma, o que nós temos proposto é que, tendo todos os requisitos, ou todos os elementos identificados de que as eleições são fraudulentas, é não ir a eleições, não participar nas eleições. Porque o participar credibiliza a própria eleição. Ou seja, o que temos tido no país é o seguinte: por mais que se fale de fraude eleitoral, depois no final de contas os partidos na oposição tomam posse, assumem. Participam das eleições e depois ainda tomam posse, mesmo com todos os elementos [comprovando fraude eleitoral]. Os elementos são documentados, mas também são denúncias por parte de pessoas que participaram diretamente, e que deveriam inviabilizar as próprias eleições.
“A minha réstia de esperança seria que as pessoas dentro do MPLA, com a influência das pessoas que já no tempo de José Eduardo dos Santos o tinham enfrentado, pelo menos não permitissem que o novo chefe se tornasse o todo poderoso como o anterior foi.”
Em 2017, e tem sido prática em Angola, não foram escrutinados 15 círculos provinciais, e os resultados apresentados não são sequer possíveis de aferir se são mesmo daquelas províncias. O que ocorreu foi que três províncias apresentaram resultados e, curiosamente, os resultados começavam a não ser favoráveis ao MPLA. Eliminou-se a contagem logo e foram apresentados resultados administrativos. É como se fosse uma partida de futebol inviabilizada e foram apresentados resultados a nível da secretaria. Diante daquela situação flagrante em que os comissários eleitorais que lá estavam em representação dos seus partidos saíram ao público, fizeram uma denúncia bastante fundamentada de como aqueles resultados não eram os resultados dos quais eles soubessem a origem, mas os partidos que eles representam tomaram posse. Ao tomar posse legítima-se todo o processo. E o MPLA tem jogado isto na cara – com muita hipocrisia claro, com um sorriso até de desdém – “vocês estão a reclamar permanentemente mas depois tomam posse”. E tem razão. Os partidos de oposição têm dado respostas no sentido de que não. Apesar de serem fraudulentas, nós não podemos nos afastar voluntariamente das instituições porque senão tornam-se muito mais frágeis. Não concordo com esta afirmação. Não é que não tenha noção do que pode ser verdade. É que, não experimentando, nós não temos a certeza se essa afirmação é tão verdade assim.
Na fórmula que se tem usado, ou na decisão que se tem adotado, que é de tomar permanentemente posse depois de um ato eleitoral fraudulento, qual é o resultado positivo que eles [oposição] têm obtido para o país? O que se tem verificado é que nada de positivo tem trazido. Continuam a insistir que “é importante estar dentro”. Mas, em 2017, fiz uma lista com vários atropelos, várias violações de leis, até da própria Constituição, em que invoquei: “Qual é o elemento que, fazendo parte dessa estrutura parlamentar, tem surtido efeito?” Nenhum. Não há nenhuma lei que a oposição consiga fazer passar. Então esta participação permanente não tem servido de nada para o país. Tem servido só os interesses partidários. Os militantes estão empregados, têm uma vida economicamente estável. E estas são as principais preocupações dos partidos.
“É preciso experimentar algo diferente para se obter um resultado diferente. O que nós temos estado a fazer é o mesmo do mesmo e não temos obtido nada de novo. E é natural que assim seja. A não ser que se espere que o MPLA caia de podre.”
O que a juventude tem estado a propor é: identificar todos os elementos de fraude – pré-eleitoral, durante as eleições e no pós eleitoral, nos contenciosos que se levantam em função das eleições – e não tomar posse. É uma forma muito mais dura de demonstrar o descontentamento por parte de um povo. Nem é só de um partido, é de um povo. O povo não aceita fazer parte de uma estrutura que saiu de um ato fraudulento. Há amigos meus que não vão defender isto, mas eu gosto de assumir que somos nós enquanto povo que não conseguimos alterar isto, então somos todos culpados. Claro que depois há níveis de responsabilização. Mas enquanto nós não conseguirmos reverter estas instituições fraudulentas que depois, na sua prática diária, reforçam ainda mais a fraude, a corrupção, o nepotismo? faz com que ao fim de cinco anos nada de positivo surja.
Mas isso não levaria a um impasse?
No âmbito da luta política, cívica e não violenta é preciso adotar algumas medidas radicais para que se instale – e aqui assumo as palavras – o caos social. Mas esse caos não é no sentido da violência, da guerra, como é muito comum assumir, mas o caos a nível constitucional. Angola gosta muito de construir a imagem internacional, e Zé Eduardo [dos Santos], o ex-presidente, trabalhou muito nesse sentido. Se é para a imagem internacional, fica claro que há em Angola um parlamento onde não há oposição credível. Porque vai ter sempre oposição, vai haver lá sempre uns partidozitos. Mas se a oposição, o maior partido da oposição, um ou dois outros a seguir vão a reboque desta decisão [de não tomar posse], o que vai acontecer é que internacionalmente Angola fica demasiadamente descredibilizada. Vamos falar de Portugal. Agora o PS é o governo. Um parlamento onde o PSD não tomasse posse eu tenho dúvida se o Presidente da República daria posse a este governo. A nível da União Europeia teria alguma credibilidade um governo português onde o principal partido na oposição não toma posse, pelo que reivindica que as eleições foram injustas, pouco transparentes, foram fraudulentas? Tenho dúvidas. Em Angola, e um pouquinho em África, tem esse cenário em que pouco se importa com estas questões, sobretudo quando a Europa está preocupada com uma guerra, uma Europa devastada por uma pandemia. Mas isto pode vir a ter algum efeito.
E dentro do próprio MLPA não há esperança?
Eu sabia que o MPLA ia cerrar fileiras em torno do novo chefe, porque está sempre em causa a sobrevivência de um grupo. A sobrevivência política mas também se calhar a sobrevivência física porque este grupo teme o que lhe poderia suceder se passassem para a oposição. Porque há um receio mútuo que é: se eles perseguem até fisicamente os opositores, têm naturalmente algum receio de que estando na posição contrária o mesmo lhes aconteça . Por isso, é necessário defender com unhas e dentes o lugar em que se encontram. Eu pretendia que pelo menos algumas figuras internas do partido, que já tinham, ainda no tempo do Zé Eduardo, levantado a cabeça, levantado a mão, contrariado o Zé Eduardo de certo modo, pudessem influenciar positivamente mais membros dentro do MPLA para que não permitissem que o novo chefe se tornasse o dono de tudo aquilo. E [o antigo primeiro ministro angolano] Marcolino Moco tentou. Poderíamos dizer o mesmo da Irene Neto, filha do [primeiro] presidente da república. Estas duas pessoas foram completamente afastadas. Essas pessoas tentaram fazer alguma coisa e foram rapidamente postas de parte. A minha réstia de esperança seria que as pessoas dentro do MPLA, com a influência das pessoas que já no tempo de José Eduardo dos Santos o tinham enfrentado, pelo menos não permitissem que o novo chefe se tornasse o todo poderoso como o anterior foi. Porque o todo poderoso Zé Eduardo foi um indivíduo de quem, em bom rigor, o próprio MPLA ficou refém a partir de certa altura. Mas depois o MPLA, diante deste capim velho em que Zé Eduardo colocou o partido, passaram a extrair ao máximo, a usurpar funções.
Às vezes olhamos muito para a governação de topo e esquecemos a operação intermédia, que é ao nível das instituições. Da mesma forma que nós temos o rosto visível de Isabel dos Santos na Sonangol, Zé Nuno dos Santos no Fundo Soberano, Tchizé dos Santos na comunicação social, Coréon Dú com muita influência a nível da cultura e por aí adiante, mas se formos ver bem todos os outros partidos fizeram o mesmo com os seus filhos, meteram-nos nas instituições. E era suposto – embora aqui já haja o vício de forma – que não permitissem que o novo chefe não chegasse a esse nível, que chegou muito facilmente. E é por isso que digo que o presidente mais poderoso que Angola já teve, de entre os três, é João Lourenço. João Lourenço não precisa construir poder. João Lourenço já encontrou todos os poderes. João Lourenço é o primeiro presidente general, militar general, que o país tem ou teve.
E é por isso que o MPLA adora, precisa, de um chefe que controla tudo.
Então tem este lamento, mas que infelizmente ao MPLA não foi possível perceber esse aspecto. Talvez não seja questão de perceber, o MPLA precisa deste lamento. É um pouquinho como a Rússia de [Vladimir] Putin. O Putin não é muito diferente dos Césares, de Lenin, de Estaline, porque é uma cultura. Não ter um chefe que manda em tudo é o anormal. E é por isso que o MPLA adora, precisa, de um chefe que controla tudo. Em suma, é preciso experimentar algo diferente para se obter um resultado diferente. O que nós temos estado a fazer é o mesmo do mesmo e não temos obtido nada de novo. E é natural que assim seja. A não ser que se espere que o MPLA caia de podre. Já ouvi até uma deputada constitucionalista defender isto. “Eles vão-se imolar.” Mas essa imolação que estão à espera estava à beira de acontecer. Aliás, muita gente bateu as palmas quando Zé Eduardo caiu. Mas rapidamente o MPLA consolidou-se em volta do novo chefe. O que pouca gente percebe é que a manutenção do poder que João Lourenço tem estado a fazer é uma uma manutenção do poder não por João Lourenço – é pelo grupo. Eu tenho dito, inclusive, que esta chamada luta contra corrupção que João Lourenço usou como bandeira é uma gigantesca manobra de distração. Seria mais normal João Lourenço cair do que o MPLA cair. O MPLA é todo ele corrupto. E se João Lourenço fizesse efetivamente uma luta à corrupção, o MPLA deixava cair João Lourenço. Eu uso uma metáfora de um amigo, Luís Araújo, que diz o seguinte: quem espera isso de João Lourenço é como esperar que um jindungueiro desse laranjas. Como é que uma pessoa de uma estrutura permanentemente corrupta vai fazer a luta contra a corrupção? Não seria possível, sob pena do próprio João Lourenço ser uma das pessoas a fazer a tal imolação. Ele próprio é fruto daquilo, não pode fazer diferente.