Não há dúvidas de que, nos últimos tempos, a relação Estado e sociedade civil, no contexto, angolano, vem ganhando um certo progresso. A sociedade civil vai ganho espaço nas decisões tomadas politicamente por parte do Estado (percebido em strito sensu). Essa relação Estado e sociedade civil, que se dá num espaço (abstrato) mais amplo, que é o Estado (em lato sensu) enquanto uma agrupamento social politicamente organizado, com os seus mais lídimos constituintes, (dentre eles, o povo é o governo).
O Estado moderno – se nos permitimos aqui nos servir de um olhar da sociologia das organizações – é um sistema onde actores (singulares e colectivos) estão constantemente estabelecendo relações de poder. Desde os contratualistas (Hobbes, Rousseau entre outros) a muitas análises modernas nas ciências sociais, veio ficando às escuras esse olhar ao Estado. O Estado não é uma entidade isolada que regula ao de cima um conjunto de actores.
Com o surgimento da sociedade civil, o Estado deixou de ter o “monopólio da acção política”. Se concordarmos que “política é a arte de tomar decisões”, isto implicaria a dizer que o Estado perdeu o poder de tomar decisões por si mesmo. As diversas organizações da sociedade civil reivindicaram a sua participação nessa toma de decisões, por assim dizer, na política. Não é vão o surgimento das chamadas “formas modernas de participação política” (via televisão, jornal, rádio e, a mais recente, redes sociais), que vão se opor as formas mais tradicionais (via voto).
E neste contexto de análise que olhamos para as dinâmicas da relação Estado e Sociedade civil. O governo e os demais actores (como partidos políticos, igrejas, associações, meio de comunicação de massa) concorrem numa luta de poder por “definição” do politicamente correto/errado, digno/indigno, a fazer e/ou a não fazer. Assim, a esfera política e a esfera pública cruzam-se num ângulo em que formam um campo de forças, de lutas e contradições, não buscando satisfazer unicamente seus interesses (no caso seria um “estado de natureza” de guerra de todos contra todos, nem também o que queria Hobbes: um Estado pelo qual todos renunciam a sua liberdade; nisto, um Estado que sozinho regula o sistema, toma decisões de vida ou de morte do mesmo). Contrariamente, os actores, apesar da sua autonomia que não se esgota nas soberania do “Leviatã”, os quais lhe dão legitimidade, participam na regulação do sistema (do Estado). Essa análise nos afasta do determinismo funcional.
Esse contexto a que nos referimos, em que um conjunto de actores tomam espaço e se afirmam na esfera político-pública, só foi possível em função da transição do monopartidarismo ao Estado Democrático de Direito, isto em 1990, o que levara anos para a sua cada vez mais consolidação. Passados anos em que isto se tornou possível, em função do exercício dessa relação, nos últimos tempos, de maior abertura para o exercício da liberdade de expressão e de imprensa, qual é a situação dessa relação Estado Sociedade Civil?
Como o Estado, por meio do executivo, tem vindo a gerir essa co-presença da sociedade civil que, como nunca antes, põe o seu pé para dentro das acções/decisões políticas?
Toda organização, no caso aqui o Estado enquanto uma organização política, tem lhe dar com “incertezas”, que impõem problemas. A resolução desses incertezas exige a competência dos seus actores; “trata-se de competência de saberes práticos que permitem controlar as incertezas”, como todo “evento a evitar” que consequentemente levanta problemas difíceis. (Friedberg, 1993, p. 281).
Em situações difíceis, como uma igual a do COVID-19, os actores sociais são chamados/motivados a “pôr em cima da mesa” o seu saber e as suas habilidades para controlar os problemas impostos pelas incertezas. No nosso contexto, as acções do MINSA (Ministério da Saúde) tem sido uma afirmação de competência por parte daquele órgão do executivo, que tem permitido diminuir a incerteza (no caso, a contaminação comunitária).
Uma outra realidade tem sido as acções que têm sido levadas a cabo no âmbito da contenção dos efeitos sociais das medidas de combate ao COVID-19 (como o estado de emergência, que obrigada os cidadãos ao confinamento social) nas famílias mais vulneráveis. Vários têm sido os autores que têm contribuído com acções de doações para acudir a essa situação. Os meios de comunicação social, enquanto autores, têm vindo a cobrir tais actividades até um momento em que se instalou um “um moralismo politicamente infundamentado”, por parte de alguns actores, singulares e colectivos.
Porque, moralismo politicamente infundamentado?
Não precisamos fazer recurso a teoria dos Campos sociais (do sociólogo francês Pierre Bourdieu) para percebermos que cada campo social (político, religioso, académico, jornalístico etc.) são regidos por lógica própria, ou seja, regras e relações de poderes próprias daquele campo. Neste sentido, o campo político é regido por uma lógica de concretização de fins por meios que não precisam ser moralmente justificáveis. No campo político, os valores morais não são um meio de avaliação das acções e escolhas políticas como boas ou más, corretas ou incorretas (como acontecia na Idade Média, onde não existia separação Estado e igreja). Neste campo, no contexto da concepção moderna de política, são os fins que o ditam; são os resultados.
A posição crítica de alguns actores em relação à atitude dos (outros) actores (políticos) que doavam bens e a comunicação social cobria tais eventos é um julgamento baseado em princípios (por sinal morais) de um outro campo, o campo religioso: “não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita”. Recomendar que os partidos políticos façam as acções de doações sem “holofotes” é uma chamada de atenção – não diria injusta – mas sim excessivamente “moralista cristão”. Como dizia Weber na sua obra “A política como vocação”: “o cristão faz o bem e deixa os resultados ao Senhor” (Weber, 1971, p. 1441), o político não sua acção visa resultados. Se chamarmos novamente Weber, a sua acção é “racional com relação a fins.” Olha-se para essas acções em termos de implicações latentes: marketing político, eleitoral, coisificação dos pobres etc. Há politicamente algum fundamento? – Minha lucidez pelo menos não me permite dizer que haja!
Mas, mais do que insistirmos se há não fundamento – como está óbvio – o grande problema urge quando os políticos cedem, recuam. E quais as implicações (sóciopolíticas) desse recuo?
Numa primeira apreciação, o Estado pode ganhar o apoio da franja do povo que se revê em tal medida. As implicações (situacionais) mais graves surgem desde o momento em que tal decisão (a de não transmitir as doações) cause inércia a certos actores (da esfera política e económica). Porquê? A emissão de actos de solidariedade pode ser meio para atrair outros actores sociais a fazerem o mesmo. Ou ainda, certos actores podem aderir à doação movidos pela idéia de poderem ser vistos. É isso mesmo, vistos. E isto é politicamente incorreto?! A não ser que a nossa esfera política seja regida por princípios morais religiosos! E não seja o nosso Estado um Estado laico!
As competências de uns (se por vezes descontextuais), uma vez abraças institucionalmemte como solução de um problema, pode engendrar um processo de reforço desses actores, enfraquecendo concomintamente outros é o que queremos – imprestando a expressão de R. Lussey – chamar aqui de “síndrome da maçã podre”. As doações não podem correr o risco de pararem para “fazer compota com maçãs podres”. Ou seja, acções moralmente boas (por serem invisíveis), mas politicamente “absurdas”; contrárias à razão política. Ceder a este tipo de pressão é um “elogio político ao absurdo”.