Economia

“A família do antigo Presidente não pode vitimizar-se, as vítimas estão no país, foram os angolanos”

Na sequência da série de entrevistas que a Camunda News tem feito a relevantes personalidades, angolanas ou relacionadas com instituições angolanas, sobre o combate à corrupção no país, um balanço dos primeiros anos do primeiro mandato do Presidente João Lourenço, apresentamos a primeira parte da entrevista com o economista, comentador de questões económicas e jornalista, Carlos Rosado de Carvalho.

Enquanto economista, quais são para si os maiores desafios do combate à corrupção?

Há uma coisa que nunca foi feita e que tem de ser feita no combate à corrupção, que é a declaração de rendimento e património dos políticos, sem que isso seja feito, não vamos conseguir combater a corrupção. Nunca iremos saber tudo e sobre todos, como é óbvio. E tal como acontece em qualquer parte do mundo, os políticos vão tentar encontrar testas-de-ferro e outros subterfúgios, esse é um primeiro aspecto que considero importante. Um outro aspecto igualmente importante é separar a gestão da coisa pública, da gestão de empresas – quem é político, é político, quem é empresário, é empresário. Há muitos conflitos de interesses em Angola. Depois temos que o combate à corrupção exige muitos meios e alguma sofisticação – os corruptos e os corruptores são cada vez mais sofisticados – e por isso temos de ter uma Justiça que disponha de meios e de recursos para combater a corrupção. O que não é manifestamente o nosso caso. Outra questão, ainda, é a independência do poder judicial. E, sim, sei que estou a falar de coisas que não tem a ver com a economia, mas são questões que se não estiverem salvaguardas, de economia e da eficácia do combate à corrupção. Embora, e qualquer pessoa intelectualmente honesta o reconhece, foi feito alguma coisa, diria, mesmo, muita coisa, ainda que mais para um lado do que para o outro.

Vamos só esclarecer aqui um aspecto: a declaração de rendimentos dos políticos já é feita, só que em envelope fechado e selado, o que equivale praticamente a nada.

Não tem interesse nenhum. Não têm consequências nenhumas. Há dois políticos que já foram condenados – embora a decisão ainda não tenha transitado em julgado, há recurso -, que são Augusto Tomás e Manuel Rabelais, e nós não conhecemos as declarações de rendimentos deles. Quem é que as abriu?

E estava previsto que em caso de processos judiciais podiam ser abertas, desseladas, digamos assim…

É PGR que abre, e fica tudo na PGR? Eles fazem o que entenderem fazer. Podem divulgar a minha e não divulgar a de outra pessoa. É o que eles quiserem que seja. Isto tem de ser uma coisa que seja geral para todos e que esteja disponível para o público, de outra forma é brincar às declarações de rendimentos.

Há quem fale “do caminho de gelo fino da justiça angolana” quando se refere à carta rogatória que o procurador-geral de Angola entregou pessoalmente à sua homóloga portuguesa, que terá tido resposta e terá gerado alguma confusão: uns dizem que houve uma resposta e outros dizem que não há resposta alguma, na sua opinião, em que é que ficamos?

Francamente, não dou muita importância a isso. Houve um pedido em tempos, mais recentemente, um desmentido, que é um desmentido muito sem sentido, começaram por dizer que não receberam, o que não quer dizer, entretanto, que não tenham recebido. Mas isto também são coisas que nunca vamos saber. Da mesma forma que não conhecemos o teor da carta rogatória. Qual foi o critério?

Há dezenas de perguntas que os jornalistas gostariam de fazer mas não sabem a quem. Acha que tem a ver com a falta de transparência dos processos judiciais, em que a Justiça entra demasiadas vezes no jogo político, ou é uma questão de segredo de Justiça? É que parece tudo muito baralhado?

Podemos falar mais de desigualdades em questões concretas. A PGR tem procedido ao arresto de uma série de bens e outros são entregues, mas se olharmos para os comunicados da PGR, há ali uma selectividade muito grande, por vezes fala-se de nomes, outra vezes não se fala de nomes, não se percebe onde é que há segredo de justiça e onde não há. Supostamente, o que não se podia, em termos individuais, foi quando se tratou do repatriamento voluntário, aí havia limitações à divulgação, quem repatriou voluntariamente não podia ter o seu nome divulgado…

Mas essa questão ficou resolvida lá atrás, porque o repatriamento voluntário foi de seis meses…

Justamente, a partir daí devíamos saber exactamente o que foi arrestado, o que é que foi congelado, o que foi entregue. Há algumas figuras que todos nós pensaríamos que deviam ser objecto de investigação, etc, mas que não estão a ser. E o que nos dizem é que essas pessoas entregaram as coisas, mas nós não sabemos. E, portanto, há aqui uma enorme falta de transparência, incluindo da PGR. A divulgação de nomes, nesta fase, é uma sanção de natureza social com a qual eu concordo. Goste-se ou não, houve um prazo para entrega, e foram entregues coisas, há comunicados da PGR que assim o dizem, o Kero, por exemplo, foi entregue, não foi arrestado. Porque é que se diz para uns e não se diz para outros? Há aqui uma grande confusão, o que faz aumentar a especulação.

Vamos aos casos concretos: sobre Manuel Vicente, o que é que se sabe?

Eu não sei nada. O que nós sabemos é que, e nomeadamente no Banco Económico, foram entregues as acções correspondentes a 30% do banco…

… de que valores estamos a falar, mais ou menos?

Não tenho muito presente, mas seriam um cento e tal milhões de dólares, mas não são contas com o Económico, são contas com a Sonangol, que terá emprestado dinheiro ao engenheiro Manuel Vicente e ao general “Kopelipa” para comprarem uma participação no Económico, e agora o que nós sabemos é que as acções foram devolvidas, e as acções devolvidas não valem nada, não têm valor nenhum. E vai ficar tudo assim? Tudo isto faz do combate à corrupção um processo muito pouco transparente, e, depois, sujeitam-se, efectivamente, às acusações de selectividade. Relativamente a alguns diz-se tudo, manda-se a televisão e filma-se, outros há que passam pelos pingos da chuva.

E relativamente ao general Higino Carneiro, o que é que sabemos?

Aí ainda sei menos. Diz-se muita coisa, mas de concreto nada se sabe. O que tenho estado a dizer são as informações que são públicas, e no caso do general Higino Carneiro não tem saído muita coisa, a não ser que está a decorrer inquérito, que ele já terá sido ouvido e pouco mais do que isso.

Dois casos muito falados: dos generais “Dino” e Kopelipa”, o que é que sabemos destes casos?

É a mesma coisa. Não tenho agora presente todos os detalhes, mas é conhecido que o Kero foi entregue, aqui não há arresto, a cadeia de supermercados foi entregue, mas não quero ir por aí, porque há o que sei e o que não sei e que não quero que seja confundido com falar de uns e não falar de outros.

Sim, entendo, mas só estava a tentar estabelecer um padrão…

Há claramente um e é o seguinte, e do meu ponto de vista, há uma parte da elite ligada ao antigo Presidente da República que não está a ser perseguida, ou, aparentemente, não está a ser atingida; e há outra que está a ser perseguida, diria que há uma perseguição selectiva. No entanto, e no que se refere aos filhos do engenheiro José Eduardo dos Santos, tinham de estar na primeira linha das pessoas inquiridas, foram dos principais beneficiários, o que vemos é que há outras pessoas que também deveriam estar na primeira linha e não estão. A família do Presidente José Eduardo dos Santos não pode vitimizar-se, as vítimas estão no país, foi o país, foram os angolanos. No entanto, continuamos sem perceber porque é que para uns é assim e para outros nem tanto.

E é essa incompreensão que leva a que a família de José Eduardo dos Santos, que claramente seria sempre visada, se possa vitimizar. E passando aos números. Há uma espécie de número mágico da PGR: 5 mil milhões de dólares, e andamos nisto há já algum tempo.

Isso não faz sentido nenhum! Esses cinco mil milhões de dólares incluem os valores do Fundo Soberano, ora bem, os valores do Fundo Soberano nunca estiveram desaparecidos. O Fundo Soberano sempre conheceu onde estavam aplicados os dinheiros, o que havia era um contrato que dava a gestão a uma empresa gestora de fortunas. Considerar esse dinheiro como recuperado através do combate à corrupção, não faz sentido.

Mas do ponto de vista político é útil?

As pessoas têm alguma iliteracia financeira e não entendem, mas eu sempre disse que não faz sentido nenhum incluir os valores do Fundo Soberano nos valores recuperados. O Fundo Soberano fez um acordo e entregou a gestão do Fundo a uma empresa, à Quantum Global, empresa que sempre informou – e eu vi esses documentos – em que é que estavam aplicados esses dinheiros, estavam em contas que estavam identificadas, só que Angola, e pelos contratos que assinou, não tinha acesso a esse dinheiro, mas isso resultava dos contratos que foram assinados… isto é mais de metade dos tais cinco mil milhões. Se houvesse transparência, e nós temos um problema em matéria de avaliação, se estamos a falar de uma empresa cotada em bolsa, não há problema de avaliação, mas quando estamos a falar de outros activos, começam os problemas, é que os activos têm de ser avaliados por alguém, e esse alguém tem de ser independente, e nós não fazemos ideia nenhuma dos valores dos activos recuperados. A única coisa que eles podem dizer, e com alguma segurança, é sobre a recuperação de valores em dinheiro. Aliás, temos um problema com o próprio Fundo Soberano, que fez uma série de investimentos e diz que esses investimentos valem mil milhões – valores esses incluídos nos valores recuperados – e que os auditores dizem que não sabem se aqueles activos valem o que se diz que valem. Ninguém sabe. Esta coisa de atirar números para a frente… eu acho que dos valores recuperados só o dinheiro é que pode ser dado como um valor certo, todo o resto têm se ser avaliado. Quanto é que vale o Kero? Eu não sei quanto vale o Kero e se esse valor está incluindo nos valores recuperados. Como se pode ver, há muita coisa que não sabemos.

Os bens passam para o Tesouro Público, para o Estado, o Estado é parte interessada, sabe-se que a Justiça é parte interessadas através dos seus 10%, não temos auditores independentes…

Por exemplo, disseram que recuperam as centralidades, o que nós sabemos é que a maior parte das casas das centralidades foram vendidas, nem eram das pessoas a quem, supostamente, foram recuperadas. Qual é o valor de tudo isso? Ninguém sabe. Há interesse em atirar números para o ar, mas não há interesse nenhum em esclarecer os angolanos sobre os valores recuperados no combate à corrupção.

Vamos a mais um exemplo muito concreto, no caso, dois edifícios: o CIF One e o CIF Two, arrestados com pompa e circunstância com direito a abertura de telejornal. E de lá para cá, como é que estão?

O que eu sei é que não têm ar condicionado, os elevadores não funcionam muitas vezes. Eu já tive lá reuniões em salas que não tem ar condicionado. Foi a única coisa que, e aparentemente, se ganhou, que foi a degradação dos edifícios. Esse é o problema dos arrestos e dos confiscos. Eu acho que as autoridades quando se metem nestas coisas têm de prever o day after, e depois do arresto, o que fazer? E nós corremos o risco, nestes dois casos concretos, da eventual degradação dos edifícios. Eu fui ao CIF antes do arresto e depois do arresto e não são os mesmos edifícios. E, sobretudo, quando estamos a falar de imóveis, o Estado tem de ter especial cuidado, há imóveis no Zango que estão completamente degradados. Temos de ter cuidado com os bens que arrestamos, que não podem servir só para abrir o telejornal.

Temos que o Estado a uma má gestão acrescentou outra pior. Vamos agora tentar pensar que parte destes bens eram empresas que antes funcionavam – mesmo que com dinheiro do Estado – e que agora não estão a funcionar. Não posso deixar de lhe perguntar, e de novo como economista, que balanço é que faz destes três anos de combate à corrupção? Onde é que o cidadão angolano saiu beneficiado? Temos um discurso moral, sim, mas, e em termos práticos, o que é que temos?

A questão é exactamente essa. Todas as acções têm custos e benefícios, e, portanto, acredito que qualquer combate à corrupção tem mais benefícios do que custos, sobre isso não tenho dúvidas. Não consigo dizer qual é o balanço, mas não tenho dúvidas que há benefícios. Às vezes ouço outros economistas dizerem que o combate à corrupção trouxe desemprego, eu não sei, não tenho elementos que o confirmem. Algumas das coisas que foram arrestadas já estavam mal, não ficaram mal, e, por isso, iriam despedir em quaisquer circunstâncias. Associar o combate à corrupção à desgraça e à falta de benefícios dos angolanos, parece-me que é uma estratégica de quem está a ser ameaçado, de quem está a ser visado pelo combate contra a corrupção. Não tenho dúvidas, embora não tenha todos os elementos, que o combate à corrupção tem um saldo positivo, além do aspecto moral e de tudo o resto. E associar o desemprego ao combate à corrupção é um disparate.

Quais são, e na sua opinião, neste momento, as grandes empresas angolanas.

Não sei. Ando a tentar fazer uma lista das 100 maiores empresas angolanas e não consigo, mas, claramente, há duas empresas… falamos muito na Sonangol, mas uma das empresas, talvez mesmo a mais importante do país, é a Unitel. Vivemos no mundo digital e quem assegura praticamente todas as ligações é a Unitel .

Mas a Unitel ainda tem uma questão parassocial…

Esse é um dos problemas da Unitel. Mas não sei se entra na questão do combate à corrupção ou não, porque isto é uma guerra antiga. A Unitel teve momentos de grande instabilidade accionista, e essa instabilidade afectou a gestão, e nós hoje sentimos pela qualidade dos serviços e outros questões, que já não é a mesma Unitel. Eventualmente decisões de investimento que foram adiadas. Mas estamos a falar de situações que só lateralmente tem a ver com o combate à corrupção.

Acha, e apesar de tudo, que o combate à corrupção vai conseguir transformar a relação dos agentes económicos em Angola numa relação mais sã?

Não. Não tenho dúvidas absolutamente nenhumas em dizer que não. O que o combate à corrupção fez até agora foi engordar o Estado. O Estado está, claramente, mais gordo. O problema não é o combate à corrupção, o problema está na gestão do combate à corrupção. Não se pode pôr a PGR a arrestar coisas, para as quais não se tem uma perspectiva de gestão, eles dizem que há um fiel depositário, a mim dá-me ideia de que eles nunca pensaram muito nas consequências dos arrestos que faziam. Este parece-me o principal problema: um problema de gestão. E para dizer que o combate à corrupção é uma bandeira do Presidente João Lourenço é preciso ter alguma boa vontade, porque o combate à corrupção é um problema de Angola, de todo o país, nomeadamente da oposição, que ficou sem saber o que fazer, porque o Presidente João Lourenço retirou-lhe esses temas. O combate à corrupção é coisa que o Presidente tem o mérito de ter feito, com aspectos que podemos criticar, sim, mas foi introduzido na actualidade e na vida angolana e dificilmente vai sair.

(continua…)

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