Um dia, uma aluna do mestrado de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Faculdade Nova de Lisboa perguntou ao seu orientador porque é que a “primavera marcelista” tinha falhado tão clamorosamente, ao que o reputado professor lhe respondeu: “porque foi incapaz de mudar o regime”. Outro historiador, Vasco Pulido Valente, escreveu que Marcelo Caetano “foi o homem a meio da ponte”, outros defendem que Caetano não podia deixar de ser o que era, um político que se fez nas estruturas do poder do Estado Novo, que passou pelo seminário, pela Mocidade Portuguesa, que dirigiu, pelo governo onde teve vários cargos, e pela Universidade onde viveu os sobressaltos das lutas estudantis, sem se dar conta a força do movimento académico. Um homem que falhou na sua percepção da realidade. E falhou.
Por estes dias, o consultor jurídico do site Maka Angola, académico e investigador do Centro de Estudos Africanos da Universidade de Oxford, não tem, no entanto, dúvidas de que o impulso reformista iniciado por João Lourenço já não vai voltar atrás. No entanto, “pode ser uma espécie de um Marcelo Caetano angolano: faz a abertura, tenta reformar o sistema por dentro, mas em última análise as estruturas do MPLA [partido do poder] não o deixam reformar e acaba por desembocar numa revolução ou numa convulsão. A alternativa é ser mais como um Deng Xiaoping [na China] e acaba por conseguir fazer a reforma por dentro e lançar o país na prosperidade”, afirmou Rui Verde, em entrevista à Lusa, a propósito da publicação do seu próximo livro, Angola at the Crossroads. Between Kleptocracy and Development (Angola numa encruzilhada. Entre a Cleptocracia e o Desenvolvimento).
Passamos a transcrever o texto da notícia da agência portuguesa. O livro, a ser editado pela IB Tauris, do grupo Bloomsbury, em Março, resulta do seu trabalho de investigação em Oxford e incide sobre os últimos dez anos de Angola, abordando o fim da era dos Santos e a transição para o novo presidente, João Lourenço, que se encontra numa situação “muito difícil”.
Se, por um lado, a transição para um sistema diferente era “quase obrigatória”, depois do sistema criado por José Eduardo dos Santos ter falhado e “batido na parede”, a partir de 2014, o seu sucessor, João Lourenço não tem tido a vida facilitada.
“Havia necessidade de uma reforma, o problema é que João Lourenço tem tido azar”, observou, notando que o Presidente angolano está a promover reformas numa situação económica mundial marcada pela descida do preço do petróleo e pela pandemia, seguindo políticas restritivas impostas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), que tem em curso um programa de assistência financeira.
“O facto de a economia não arrancar pode ter consequências muito graves para as suas intenções reformistas”, sugeriu o também fundador da Rede de Investigação Científica de Angola (Angola Research Network).
O jurista admite que é possível também um cenário semelhante à saída de José Eduardo dos Santos do poder, que considerou “um pouco apressada” e praticamente imposta pelos seus pares do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), há mais de quatro décadas no poder
“Pode haver um cenário em que os próprios pares não lhe permitam a continuação das reformas e acabem por suscitar uma saída. O problema é que, neste momento, o génio já saiu da garrafa e nem tudo depende de João Lourenço e da vontade dele”, frisou Rui Verde, indicando que a povo já exprime o seu descontentamento de forma livre e saiu às ruas várias vezes em 2020.
“Já não se volta atrás, não se sabe é o caminho”, destacou o académico, afirmando que haverá um momento em que João Lourenço terá de desatar o nó górdio.
“Há um momento em que João Lourenço vai ter de se definir e limpar, digamos assim, a tralha do passado. Por que se não o fizer, vai ficar enredado exatamente naqueles dilemas do Marcelo Caetano em 1972 e 1973, que se dizia que piscava à esquerda e virava à direita (?) Julgo que 2021, ou 2022, será o momento da decisão de João Lourenço: ou avança ou corre sérios riscos”, prevê o especialista em Direito.
Sobre a escolha de João Lourenço como sucessor de José Eduardo dos Santos, também abordada no livro, Rui Verde analisa várias teorias, desde a influência russa a uma opção de continuidade eduardista que falhou.
“Há várias correntes. Uma, diz que foi uma escolha russa e que tal como José Eduardo dos Santos tinha uma formação russa, os russos acharam que era altura de escolher outro homem, também formado na Rússia, mas não acredito nessa versão. Outra diz que a ideia era arranjar um líder fraco que fosse controlado pelo próprio MPLA, nomeando uma pessoa maleável. Se era esse o pensamento, falhou, porque João Lourenço revelou-se um líder forte. Uma terceira linha diz que se precisava de uma pessoa com autoridade e determinação e que pensavam que João Lourenço seria o ideal”, avançou.
Rui Verde disse que se tentou replicar em Angola o sistema soviético de poder, em que o partido político controlava o Estado, mantendo os eduardistas nos bastidores, mas apresentando uma cara nova, maleável.
Rui Verde assinala que João Lourenço tentou, sobretudo nos primeiros dois anos do seu mandato, iniciado em setembro de 2017, dar uma imagem nova de Angola enveredando uma política externa agressiva, enfraquecida nos últimos tempos pela pandemia, manifestações e um “certo contra-ataque eduardista”.
Para o jurista, é a juventude, que se tem visto ultimamente, nas várias manifestações que marcaram o ano de 2020 no país lusófono “que começa a ter nas mãos o futuro de Angola”.