Economia

Sobre os modelos de organização da sociedade e os critérios de elegibilidade para cargos públicos – David Boio

De acordo com três propostas filosóficas, uma estrutura política pode promover a igualdade, a igualdade de oportunidades ou a equidade.

Em síntese, a primeira (promoção da igualdade) insere-se nas propostas do materialismo histórico que tem como objectivo final a construção de uma sociedade sem classes (todos iguais). Essa proposta de organização política gera necessariamente injustiça social “absoluta”, na medida em que trata como iguais situações diferentes. A TIRANIA DA IGUALDADE GERA A MAIOR DESIGUALDADE

A proposta da promoção da igualdade de oportunidades é atribuída à direita liberal (centro direita). Na perspectiva desta corrente, a estrutura política deve essencialmente garantir que todos os cidadãos tenham legalmente igualdades de oportunidades, independentemente das situações iniciais de cada indivíduo. Por exemplo, o Estado deve garantir igualdade de oportunidade para que todos os indivíduos tenham acesso à educação de qualidade independentemente das suas condições socioeconómicas. Os defensores desta posição defendem ser essa a única ou a melhor forma de se criar uma sociedade que tenha como pilar a promoção do mérito.

Por último, a promoção da equidade é atribuída à esquerda liberal (centro esquerda). De acordo com essa perspectiva não basta que o Estado garanta igualdade de oportunidades é necessário que a sociedade se organize com base no princípio da equidade. Ao contrário da direita liberal, defendem que as opções e políticas do Estado não devem ser cegas em relação às condições iniciais de competição ou de acesso aos bens (o MaxMin de John Rowls). Continuando com o exemplo anterior, para que todos os indivíduos tenham igual acesso a uma educação de qualidade é necessário que o Estado minimize as desvantagens dos mais desfavorecidos (através de quotas de discriminação positiva). Essa opção tende a nivelar a sociedade por baixo.

Nesse quadro, qual é ou tem sido a opção do nosso governo?

Entre 1975 até finais da década 80, o MPLA governou o país de acordo com o modelo político socialista. Teoricamente todos os angolanos eram iguais: todos estudavam nas mesmas escolas (só existia escola pública), todos adquiríamos os bens de consumo nas lojas do povo através de um cartão abastecimentos (claro havia cartões e lojas dos dirigentes militantes e dos cooperantes), todos os meios de produção eram estatais (não existiam empresas privadas). Em suma, não havia igualdade de oportunidades e nem equidade.

Após o fim do socialismo, o MPLA partido do governo desde 1975 tem sido incapaz de ter uma posição ideológica clara. Formalmente afirma que possui uma ideologia de esquerda democrática. Contudo, os resultados das suas políticas governativas não têm promovido a equidade na medida em que construiu-se uma sociedade caracterizada essencialmente por um fosso entre os pouquíssimos que tudo têm e a esmagadora maioria que nada tem (dados do afrobarometer recolhidos em 2019 indicam que cerca de 93% dos angolanos são pobres e 43% enfrentam pobreza extrema).

Na prática, utilizando a expressão de Tony Hodges, Angola passou do Afro-Estalinismo ao Capitalismo Selvagem. Pois, os governantes do MPLA, depois de abandonarem o socialismo de Estado no final da década 80, abraçaram um capitalismo distorcido pela manutenção de mecanismos dirigistas e não transparentes de atribuição de recursos. A elite do MPLA constituiu fortuna com base nas concessões diamantíferas, na privatização de propriedades do Estado e no acesso privilegiado a empréstimos bancários e divisas. O Estado (sem accountability) não prestou contas de uma parte importante das gigantescas somas monetárias públicas geradas pela venda do petróleo.

O que resultou desse modelo?

Observa-se que resultou uma sociedade, com um nível de exigência muito baixa, inclusive nos cargos públicos de suma importância.

Vamos de forma resumida ilustrar a nossa posição analisando o perfil de alguns dos nossos altos responsáveis de cargos públicos através dos critérios de qualificação académica e profissional.

Um dos principais cargos do nosso executivo, o Ministério das Finanças, é exercido pela Dra Vera Daves. A Ministra é licenciada em Economia pela UCAN, sem nenhuma formação pós graduada, e com uma série de formações profissionais nas áreas da banca e liderança. Não tendo publicado pessoalmente nenhuma obra, é co-autora de um livro de Finanças Públicas e não publicou sequer um artigo científico. Em termos profissionais, em 11 anos, a Ministra passou pela Sonangol (técnica de finanças), foi docente de Finanças Públicas na UCAN, Directora do Banco Atlântico e desempenhou cargos públicos na CMC, como administradora e depois como presidente. Realça-se o facto da Ministra não ter tido experiência como gestora de topo no sector privado e de não ter nenhuma experiência profissional e nem de estudos ou experiência profissional em entidades internacionais.

Para termos uma noção comparativa, o Ministro da Fazenda (Finanças) do Brasil, Paulo Roberto Nunes Guedes é Mestre e Doutor pela Universidade de Chicago (EUA), foi professor da PUC-Rio e FGV. É um dos fundadores do Banco Pactual e de vários fundos de Investimentos e Empresas.

Em Portugal, o Ministro das Finanças, João Leal, é Doutorado pelo MIT (EUA), Mestre e licenciado em Economia pela Universidade Nova de Lisboa. Em termos profissionais foi Presidente da Comissão Científica do Departamento de Economia do ISCTE, integrou grupos de trabalhos no âmbito da OCDE e foi membro do Conselho Superior da Estatística.

A Ministra Vera Daves tem simultaneamente um nível mínimo de qualificações académicas e uma experiência razoável para o nosso contexto (Havendo decerto indivíduos com maiores qualificações académicas e mais experiência profissional para a área, como é caso do economista José Cerqueira, entre outros). E está muito distante das qualificações académicas dos seus congéneres do Brasil e Portugal (realidade que podemos considerar como a ideal).

No sector da Justiça podemos olhar para o perfil do actual Juiz Presidente do Tribunal Constitucional, Juiz Manuel Aragão. Foi embaixador e Ministro da Justiça. O Juiz Manuel Aragão em termos académicos é licenciado em Direito, sem nenhuma formação pós graduada, tendo realizado alguns cursos profissionais. De acordo com o CV disponível no site do TC, não possui obra publicada e nem artigos publicados. Em termos profissionais foi Juiz do Tribunal Supremo e membro do Grupo Técnico da Comissão Constitucional.

No Brasil, o Ministro do Tribunal Supremo Federal, Luis Fux, é licenciado e Doutorado em Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Em termos profissionais, foi professor de Direito do Processo Civil da mesma Universidade, foi advogado da Petrolífera Shell do Brasil, foi juiz desembargador do Tribunal do Estado do Rio de Janeiro e foi Ministro do Superior Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Publicou diversos livros e é membro da Academia de Letras Jurídicas.

Em Portugal, o Presidente do Tribunal Constitucional, Manuel da Costa Andrade, obteve os graus de Mestre (1982) e Doutor (1990) na Universidade de Coimbra. Em termos profissionais atingiu o grau de Professor Catedrático. Possui dezenas de obras publicadas em português, espanhol, francês, inglês e alemão. Foi professor nas Universidade do Brasil, Macau, Angola. A par de professor e investigador, desenvolveu também uma regular atividade de jurisconsulto e de crítico de jurisprudência, participando também na elaboração de vários projectos legislativos.

Um outro cargo de extrema relevância é o de Governador dos Bancos Centrais. No caso angolano o cargo é actualmente exercido pelo Dr. José de Lima Massano. O Dr. Massano fez toda a sua formação académica no Reino Unido. Mestre em Contabilidade e Finaças pela City University e licenciado em Contabilidade e Finanças pela University of Salford.

Em termos profissionais, começou pela Sonangol, depois passou pelo BPC (Administrador). Sai do Banco público BPC para Presidente da Comissão Executiva do BAI (Banco com capital público), após isso foi nomeado para o cargo de Governador do BNA.

Após a sua exoneração regressou ao cargo de Presidente do BAI e dessa função regressou ao actual cargo de Governador do BNA.

Realça-se o facto de ter estado a “saltar” entre um banco comercial e o governo do BNA. Esse sistema de passagem do público-privado-público é o “revolving door”, ou porta giratória.

No Brasil, o Banco Central é presidido por Roberto Campos Neto, graduado em Economia, com especialização em Finanças pela Universidade da Califórnia. Passou pelos Bancos Bonzano Simonsen e pelo Banco Santader do Brasill, nas áreas de operações de dívida externa, bolsa de valores e formador de Mercado Regional e Internacional. A nomeação do Governador do Banco do Brasil carece de aprovação do Senado.

Em Portugal, o Banco Central é governado por Mário Centeno anterior Ministro das Finanças. O Professor Mário Centeno é Doutorado em Economia por uma das mais prestigiadas universidades do mundo, Universidade de Harvard; Mestre pela mesma universidade, Mestre em Matemática Aplicada pelo ISEG e licenciado em Economia na mesma universidade.

Em termos profissionais foi Ministro de Estado e das Finanças, foi Presidente do Eurogrupo, e é Professor Catedrático da Universidade de Lisboa. O Governador do Banco de Portugal é nomeado por resolução do Conselho de Ministros, sob proposta do Ministro das Finanças e após audição por parte da Comissão da Assembleia da República.

Julgamos que o perfil do Dr. Massano está equiparado ou mesmo acima do actual Governador do Banco do Brasil (muito abaixo do anterior Governador do Banco do Brasil no governo de Temer, IIan Goldfain, Doutorado pelo MIT com vasta experiência, inclusive no FMI).

Os actuais governadores dos Bancos Centrais de Angola e do Brasil estão claramente distantes do curriculum académico e profissional de Mário Centeno. E realce-se o facto de o Governador do Banco Central de Angola ser o único, entre os três, cuja nomeação depende da vontade individual do Presidente da República.

Em Roma, a ascensão na administração, de onde todos bebemos, fazia-se através de um percurso, o cursos honorum (caminho das honras). Nesse quadro, o que confere legitimidade e autoridade é o percurso.

Em Angola não temos um sistema semelhante, tal como se verifica nos exemplos acima expostos, pois, basta a nomeação para aceder ao lugar. Ora o que acontece é o que vimos descrevendo, carecem de autoridade, que só vem do reconhecimento dos pares, e ou, da comunidade. Por exemplo, a carreira do governador do Banco Nacional na banca começa logo como Administrador de um banco, sem nenhum percurso prévio no sector.

Os critérios e o processo angolano de elegibilidade para cargos públicos salienta, ainda mais, o problema da concentração do poder no decisor máximo. O líder de uma república não deve ser um chefe inquestionável; aliás, se queremos ser uma democracia precisamos de transparência, escrutínio e dispersão do poder.

Sem querer atribuir aos exemplos apresentados qualificações de mediocridade, porque podem existir pessoas sem altas qualificações académicas que sejam muito competentes; como princípio regra, urge a necessidade de pensarmos num modelo exigente quanto aos critérios de elegibilidade para cargos públicos. Se não mudarmos o actual modelo, salvo sejam as excepções que confirmam a regra, estaremos a insistir num modelo de sociedade que nivela tudo por baixo, e essa situação só pode promover a mediocridade.

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