Não tenho foto com o Mamadou Ba porque, infelizmente, quando ele veio à Suíça e tínhamos combinado um encontro, não deu para nos vermos. O único que tenho é um texto de novembro de 2017 no qual eu reagia a algo semelhante ao que está a acontecer agora. A minha solidariedade não é apenas individual. É uma solidariedade com uma ideia, nomeadamente a ideia de que os verdadeiros inimigos duma sociedade democrática não são as pessoas que mostram onde estas continuam aquém do seu próprio ideal. Os verdadeiros inimigos são os que se recusam a aprender da história. Infelizmente, esta crítica vale tanto em Portugal, quanto, e talvez sobretudo, em África onde continuamos a resistir ao apelo que a história nos faz para civilizarmos o mundo.
“Exposição ao condicionamento da mente
Há discussões que apenas valem pelo que dizem sobre o compromisso dos intervenientes com certos valores. A discussão sobre memória e responsabilidade moral em Portugal é uma delas. O “Expresso” publicou recentemente um texto curioso da autoria de Guilherme Valente, por sinal, editor da Gradiva, uma das melhores editoras do país. Nesse texto o autor descreve as pessoas que lutam contra o que consideram racismo em Portugal, mas também contra a amnésia histórica, como sendo os “novos colonizadores”. São pessoas que, segundo o autor, de tão preocupadas que estão com o racismo acabam por o recriar ao mesmo tempo que promovem a intolerância contra todos aqueles que acham que Portugal não é um país racista.
A luta contra o racismo é logicamente falando um empreendimento paradoxal. Ele cria ou mantém em vida justamente o que procura combater. Foi nesse sentido que Jean Baudrillard – sociólogo francês citado por Guilherme Valente – comparou a organização SOS Racisme à SOS Baleias (“Baleines”). Ele apontou para o paradoxo, destacando a ambiguidade da “extinção” nos dois casos. Ao invés de referir este paradoxo ao fenómeno em si, Guilherme Valente prefere ver nele a manifestação duma atitude intolerante e contraproducente da parte de quem se dedica à luta contra o racismo. Ao fazer isso, ele praticamente condena quem se sente vítima de manifestações de racismo ao silêncio para que ao reclamarem não contribuam para conferir realidade à “raça” porque esta, segundo Valente, não existe. Daí que ele até prefira substituir “raça” por “exposição ao condicionamento da pele”. Equipado desta maneira, ele pode então apelar aos grupos humanos mais expostos ao condicionamento da pele para que não insistam muito no assunto sob pena de confirmarem a existência de algo que não existe.
A lógica não é o forte de Valente. Logo no início do texto ele constata que “nunca houve tanto racismo e racistas em Portugal” como agora. É um pouco a sua ideia de ironia. Só que revela falta de cuidado na leitura dos fenómenos. A ideia não é que o racismo tenha aumentado (algo que ele nega e até pode ser que tenha razão). A ideia é que a constelação social portuguesa actual, quer a gente queira ou não, criou espaços dentro dos quais é possível não só articular esse tipo de preocupações como também promover certas causas que tornam a sociedade melhor problematizando questões relacionadas com esse assunto. A frequência com que se falaria da violência doméstica ou do abuso sexual de menores hoje não implica necessariamente o seu aumento. Pode apenas indicar que a sociedade desenvolveu novas sensibilidades morais.
Agora, o que eu acho verdadeiramente interessante é o mal-estar que é criado por aqueles que chamam atenção para um problema. Há um pouco aquilo que uma antropóloga holandesa, Gloria Wekker, chama de “inocência branca”, isto é a maneira ofendida como, segundo ela, muitos holandeses reagem a acusações de racismo por acharem que no fundo só têm boas intenções e mesmo no passado só queriam o bem dos outros. Mas há pior. O mal-estar é sintomático duma dificuldade muito grande que alguns pseudo-defensores da cultura portuguesa (ou ocidental) têm de entender a sua própria cultura. Há um efeito ecológico nisto tudo. Fazendo eles parte desta cultura que produziu tanta coisa boa no campo da ciência, política e sociedade eles acham, ingenuamente, que são portadores naturais de todas as propriedades que fizeram da sua cultura o que ela é. Inversamente, os Mamadou Bâ deste mundo seriam também portadores de todas as propriedades negativas que fazem da sua cultura o que ela (não) é.
Logo, um Mamadou Ba não pode reclamar nada. E, pior ainda, os “bio-portugueses” que fazem causa comum com os Mamadou seriam, ironia das ironias tendo em conta o que Guilherme Valente diz sobre a crítica de Mamadou Ba a Gabriel Mithá Ribeiro, “traidores” da causa portuguesa/ocidental. É justamente neste ponto onde Guilherme Valente se revela mau defensor da cultura portuguesa, pois pela forma como argumenta dá para perceber que não é a defesa da tolerância e da liberdade de expressão que o faz correr, mas sim o interesse que ele não tem em ouvir que a ideia que ele se faz da sua própria sociedade pode não estar assim tão correcta. Ele não quer ouvir isso, por isso repete quase como uma litania que Portugal não é racista (e pode mesmo não ser) ou então que os Mamadou deviam regressar “Ayàfrica” para se ocuparem dos problemas dos seus próprios países. Não sei o que ele aconselha aos “traidores” bio-portugueses.
Assim, a argumentação é feita em função da necessidade do autor de proteger as suas crenças. Numa passagem particularmente ridícula ele destaca Mandela, Gandhi, Martin Luther King e o Padre António Vieira que, segundo ele, “não enfrentaram o racismo com ódio, não odiaram os “brancos”. Martin Luther King teve a maioria ao seu lado. Amavam o país e as suas gentes, quiseram torná-lo melhor”. Esta passagem é ridícula por instrumentalizar factos históricos para defender o indefensável. O racismo na África do Sul levou Mandela a pegar em armas, razão pela qual passou 27 anos na prisão. Usar Mandela como contraste parece até nojento. Mais relevante seria questionar-se sobre a complacência da sociedade que pode levar as pessoas a esse tipo de acções desesperadas. Martin Luther King foi morto por quem não queria que ele tornasse os EUA melhor. Na sua comovente “Carta da Prisão de Birmingham” Martin Luther King responde a clérigos católicos, protestantes e até judaicos que o acusam de estar, com a sua luta pelos direitos cívicos dos negros, a semear a discórdia no seio da sociedade americana. Esses clérigos dizem-no que as coisas virão ao seu tempo, que é preciso esperar. Guilherme Valente teria assinado esse apelo e com isso sido cúmplice do bárbaro assassinato desse grande homem que tanto fez para tornar credível o compromisso americano com os seus próprios valores.
O exemplo mais claro da dificuldade do autor em compreender a sua própria cultura está patente numa citação que ele faz de Salman Rushdie: “se creem em Deus e eu não, tenho o direito de dizer que a vossa religião é absurda. A religião é crença; cor da pele é um facto”. Para além de que o argumento não está bem exposto – a crença em Deus e o absurdo duma religião são coisas diferentes – não é verdade que o facto de não crermos em Deus nos confira o direito de dizermos que a crença dos outros é absurda. O único direito que temos é de não termos crença em Deus, se não quisermos. Dizer o que pensamos de certas posturas decorre apenas da liberdade de expressão e esta pode ser limitada por lei para proteger outros bens sociais como, por exemplo, o direito que os crentes têm de crer em coisas absurdas.
Nem todo o insulto é protegido pela liberdade de expressão, nem mesmo nos EUA onde existe uma interpretação muito generosa desse conceito. Mas esse é que é justamente o problema. Os Guilherme Valente deste mundo pensam que a sua indiferença em relação aos problemas dos outros bem como a sua falta de respeito pelo outro são valores centrais à cultura “ocidental”. Não percebem que essa cultura se renova constantemente através do sentido crítico e do compromisso com a realização do seu potencial ético. A popularidade da direita nacionalista hoje traz ao de cima a vulnerabilidade da Europa à esclerose normativa.
Frases como “a religião é crença; a cor da pele é um facto” não fazem nenhum sentido. A religião é também um facto da mesma maneira que a cor da pele, até pela própria argumentação de Guilherme Valente, é apenas uma crença. É uma crença tornada realidade pela virulência das suas consequências. Saber lidar com a crítica que vem do lado de quem se considera injustiçado e, quiçá, fazer melhor se esse for o caso, faz parte de tudo quanto tornou a cultura europeia tão atraiente para muitos, apesar de tudo. Reagir à crítica com sugestões do tipo “vai para a tua terra!” mostra que o lugar de Guilherme Valente não é necessariamente em Portugal, mas sim na companhia daqueles que acham que o exercício da liberdade de pensamento seja uma ofensa pessoal. Um verdadeiro português, isto é um indivíduo comprometido com os valores democráticos que desde 1974 seguram essa sociedade, não vê na crítica uma ofensa pessoal. Ele investe nela como garante da viabilidade da sua sociedade.”