Nascido em Luanda em tempos de pandemia, o Cine Geração chegou esta semana à sua centésima sessão, celebrando o cinema africano e angolano numa cidade onde a oferta é pouca, mas o apetite é imenso.
As duas “salas” ao ar livre do Cine Geração estão na mesma casa onde está também sediada a produtora Geração 80 e a livraria Kiela, do escritor Ondjaki, e começaram, em 2020, por receber amigos e pessoas ligadas ao mundo do cinema e das artes.
A mensagem foi-se espalhando, as restrições da covid-19 acabaram, amigo foi trazendo amigo e o Cine Geração foi ficando cada vez mais cheio, com cinéfilos, artistas e curiosos, angolanos e estrangeiros de todas as idades, ávidos de um programa cultural na cidade de Luanda, mas também do ambiente descontraído que os mentores do projeto quiseram dar àquele espaço.
“A ideia era ter um espaço de celebração do cinema angolano e do cinema africano em que fossemos nós a controlar a exibição”, disse à Lusa Ngoi Salucombo, director criativo da Geração 80 e um dos membros do colectivo que lançou a iniciativa.
“Em Angola, não temos acesso a este conteúdo de uma forma facilitada, às vezes é como se vivêssemos numa ilha. Somos lusófonos, no meio de francófonos e anglófonos e esses são os que mais conteúdo africano produzem, a ideia foi ir em busca desse conteúdo”, adiantou.
Luanda ainda tem antigas salas de cinema, como a Karl Marx e o Cine Atlântico, mas os espaços, abandonados, há muito deixaram de exibir filmes.
Por agora, resta aos luandenses ver cinema nas salas de centros comerciais da periferia da cidade, que seguem uma política de exibição que não dá prioridade aos conteúdos angolanos e africanos, lamenta Ngoi Salucombo.
“Quisemos contrariar a ideia de que o angolano não é consumidor de cinema africano e angolano. O que acontece é que a oferta desse produto não é facilitada. A prova disso é que estamos há 100 semanas a apresentar filmes africanos e angolanos e 80 a 90% das sessões com casa cheia”, sublinha o também fotógrafo.
As medidas anti covid-19 reflectiram-se no projecto, concebido antes da pandemia, mas acabaram por funcionar a favor dos promotores da iniciativa, que começaram as exibições “de forma caseira”, às vezes com cinco espectadores, e ganharam tempo para dominar as questões técnicas antes de começar a crescer.
Foi também por causa da pandemia e do distanciamento, que decidiram abrir, depois da pequena sala do primeiro andar, uma outra mais ampla no quintal, e mantêm agora uma terceira de reserva para “casos excepcionais”, conseguindo acolher um total de 180 pessoas.
Na entrada do Cine Geração, um icónico mural com cartazes de cinema acolhe os espectadores e muitos aproveitam a cadeira de realizador para posar para uma foto e eternizar o momento.
Por aqui, “passam todo o tipo de pessoas”, diz Ngoi, acrescentando que todos são bem-vindos, desde os apaixonados por cinema, ao público infantil, que teve direito a sessões especiais, em Junho, o mês das crianças, e até casais que saem para namorar.
A projecção de filmes, todas as quintas-feiras, é sempre seguida de um debate, em que o público aproveita para discutir os filmes com realizadores, actores e produtores ou abordar temas como o colonialismo, a música, a política, o desporto ou a saúde mental, que estiveram em destaque em algumas sessões temáticas.
“É uma oportunidade para que nós, angolanos, possamos conversar, debatemos muito pouco. E os filmes são tão diferentes que isso obriga-nos todas as semanas a ter conversas muito diferentes e o facto de termos um público tão diversificado significa que podemos ter qualquer tipo de perguntas”, considerou o responsável.
A 100ª sessão foi assinalada com o visionamento de “Assaltos em Luanda”, de 2005, em que a dupla de irmãos ‘Taliban’ e ‘King’, tenta escapar à miséria enveredando pela criminalidade, mas acaba, sem honra nem glória, nas mãos da polícia, após uma sucessão de episódios picarescos.
Ngoi Salucombo explica que o filme surgiu numa altura de ressurgimento do cinema angolano, marcada por uma “nova febre” a partir dos anos 2000, e que assinala um momento de transição, sendo considerado o filme mais popular de sempre em Angola.
Manuela Leitão é uma das primeiras a chegar. Está em Luanda há dois meses e confessa-se fã do Cine Geração desde o primeiro momento.
“Tenho vindo todas as quintas-feiras, ver as ‘curtas’ [metragens], principalmente. Tenho gostado imenso, tenho voltado sempre e trazido amigos, o ambiente é óptimo. É um sítio onde me sinto muito confortável e onde tenho visto cinema africano muito interessante”, afirmou Manuela Leitão, salientando que estes filmes lhe trazem também um contacto com “a realidade” e as vivências de África, com os seus problemas, alegrias, tristeza e dor.
“Para mim, é muito construtivo, tenho um marido angolano, os meus filhos são meio portugueses meio angolanos e gosto de entender como as coisas podem ser tão diferentes e ao mesmo tempo tão próximas”, afirmou. “Experiências” é o que Marisa Paihama, frequentadora habitual, diz encontrar no Cine Geração. Experiências humanas na tela, mas também das pessoas com quem se cruza na “sala” de cinema, “todas muito diferentes”.
A sessão número 100 iria também ser especial para Marisa: “Foi o primeiro filme que eu vi quando vim viver para Angola. Estou ansiosa por voltar a ver o filme, hoje percebo português, naquele tempo não falava muito”, diz à Lusa, entre risos. Começou a vir ainda em 2020, em plena pandemia, e descreve esses momentos como “um alívio perfeito”.
“Ninguém saía, todo o mundo tinha medo de estar com todo o mundo, mas nós somos humanos, temos de estar constantemente acompanhados, precisamos de ver rostos”, considerou Marisa Paihama, acrescentando que começou também a dar mais valor à cultura nesse período.
Pedro Ramires, actor brasileiro, está pela primeira vez em Luanda e veio por recomendação de um amigo conhecer o espaço. “Estou muito ansioso, para mim é uma honra conhecer os artistas angolanos, os seus trabalhos, o que estão pensando, refletindo, construindo novos imaginários, estou muito feliz”, declara Pedro Ramires.
Confessa que conhece pouco do cinema angolano e que há alguma dificuldade em ter essa proximidade no Brasil. Por isso está também em busca de novas referências para “afrocentrar” e “descolonizar” o pensamento. “África para a gente é sempre uma referência, quero conhecer mais, é muito rico”, remata o actor.
Quanto os caminhos futuros para o cinema angolano, Ngoi Salucombo defende que deve apontar à produção em massa. “A qualidade vem com a quantidade. Enquanto não produzirmos filmes em quantidade não podemos esperar ter, no futuro, a qualidade”, realçou, admitindo que esta posição nem sempre é coincidente na visão do público, dos curadores ou dos produtores.
Mas ainda que seja difícil fazer cinema, porque é caro, Ngoi acredita que é a quantidade que leva ao crescimento e que possibilita que os filmes exibidos em espaços alternativos passem ao patamar “das salas de cinema normais”.
Mesmo que os cineclubes continuem, “porque têm de existir também”.