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Entrevista Benja Satula (II parte): “Para revolucionar as instituições não precisamos de muita gente”

Entrevista Benja Satula (II parte)

“Para revolucionar as instituições não precisamos de muita gente”

Publicamos a segunda parte da entrevista com o jurista Benja Satula, que acredita numa inclusiva frente de oposição, mais cívica do que partidária, como uma possível alternativa de poder, também fora dos percursos tradicionais. Satula argumenta, ainda, que o “princípio norteador da ética republicana não existe em Angola, o que existe é o poder pelo poder” e que “início do fim da hegemonia do MPLA começa quando fizermos eleições autárquicas”.

P. Se o combate à corrupção falhar, como é que o Presidente João Lourenço vai captar os votos do povo em 2022? Como é que vai alargar o eleitorado além do tradicional eleitorado do “eme”?

BS. Mais do que conquistar mais eleitorado, acho que o problema é mesmo como é que quer ser lembrado. O problema do legado. Depois de tudo o que nós vivemos nos últimos 44, 45 anos, depois dos mandatos dos primeiros Presidentes estarem ensombrados por coisas que até hoje ninguém quer falar…

P. Fala do “27 de Maio”?

BS. Sim, é uma coisa que podia ter sido aberta no mandato do Presidente seguinte. Não abriu, não falou, fez pior. Depois, as pessoas queriam um ar fresco, porque nos últimos 38 anos não tinham conseguido respirar. E o Presidente João Lourenço veio, e a expectativa das pessoas foi: é desta vez que vamos respirar um novo ar, um ar fresco. Entretanto, temo que com a pressa com que as coisas estão a ser feitas e com a resistência em se fazer…

P. No início parecia que o Presidente João Lourenço ia mudar a elite, mas depois chegamos à conclusão de que as mudanças eram dentro da elite, e a elite é a mesma.

BS. Porque a elite é o MPLA. Não há elites fora do MPLA. É impossível mudar sem mudar o MPLA.

P. Já agora, como é que acha que vai acabar o caso São Vicente?

BS. Tenho muitas dúvidas que acabe, que chegue ao fim num curto espaço de tempo. O caso São Vicente pode ter mais desenvolvimento na Suíça do que em Angola, e se a Suíça considerar que houve branqueamento de capitais, tem competência para investigar e condenar, e declarar perdido a favor do Estado suíço.

P. E Angola, mais uma vez, vai perder?

BS. Lá está, o problema é o que não entrou ou não entra. Esse é que é o grande problema.

P. Qual é a sua opinião, como homem da lei, do primado da lei, sobre uma série de incidentes, chamemos-lhe assim, da Justiça angolana, como foi o caso, por exemplo, da nomeação de Manuel Pereira da Silva para a Comissão Nacional Eleitoral?

BS. Na Justiça angolana a minha esperança é confiar nos jovens desembargadores e nos jovens sub-procuradores da República, que são da mesma geração dos desembargadores. Até lá, não espero muita coisa…

P. Já se demitiu do seu papel?

BS. Não, não me estou a demitir, estou a desistir das pessoas. Penso nisso todos os dias. É impossível colocar o presidente da Comissão Eleitoral angolana, da moçambicana ou cabo-verdiana, escutar os discursos, a coerência do pensamento, e percebemos como são diferentes; de igual modo se colocarmos o presidente do Supremo Tribunal angolano, do cabo-verdiano ou do santomense, guineense ou do moçambicano, escutamos os discursos perceberemos a diferença, é como a água e o vinho. Não há comparação…

P. Os outros são melhores?

BS. Tal e qual. Os outros são melhores. Estão melhor preparados e têm muito mais consciência do que da sua função, de independência, de imparcialidade. Sabem qual é o seu papel na sociedade.

P. Mas essa sua aposta geracional pode demorar dez a vinte anos até produzir resultados?

BS. Não. Falta pouco. Há muitas barreiras, nos concursos que impõem a necessidade 15 anos de profissão/formação, a maior parte dos estão lá ainda não têm 15 anos – é uma regra que outros colocaram, os que tinham as rédeas do jogo, para se protegerem – essa regra deve mudar, deve passar para oito a dez anos. Não vi, neste mandato do Presidente João Lourenço, uma efectiva reforma da Justiça.

P. Não teme que esses jovens sejam capturados pelo poder?

BS. Não precisamos de muitos para fazer a “revolução”. Para revolucionar as instituições não precisamos de muita gente, basta que existam entre cinco a quinze pessoas no seu interior que estejam a pensar diferente e comprometidos com a causa de bem servir Angola.

P. Mas também é preciso uma sociedade civil mais desperta?

BS. A sociedade civil vai estar cada vez mais activa. O problema é que as reacções/acções da sociedade civil continuam a ter muito pouca eficácia, apesar de passarem um recado claro. Continuarão a ser reacções sem grande eficácia se as pessoas contra quem se dirigem não estiverem imbuídas por um sentimento de cumprir o princípio norteador de uma república, que é o princípio da ética republicana, da coerência. O princípio de servir o povo. E em condições normais, as marchas que tivemos em todo o país – depois da morte do médico pediatra Sílvio Dala – implicaria demissões, por dever de consciência, do ministro do Interior, do comandante da Polícia Nacional, e até da Bastonária da Ordem dos Médicos. Demitir-se-iam em nome da ética republicana, ou seja, se sinto, no íntimo do meu ser, que as pessoas e as instituições que estão sob minha responsabilidade falharam na sua missão principal, eu sou o último responsável. Esse princípio norteador da ética republicana não existe em Angola, o que existe é o poder pelo poder. Vou agarrar-me a este poder como um náufrago se agarra aos destroços de um navio.

P. Nessa lógica de poder também não estão os melhores, porque se estivessem eles teriam essa consciência?

BS. Não, o sistema pode absorver os melhores, só que, e muito rapidamente, os melhores são reprimidos ou se reprimem e auto-censuram. Porque a lógica é a mesma, é a lógica do poder pelo poder.

P. Neste momento está em embrião uma espécie de front,de frente ampla da oposição, na sua opinião, acha que é possível concretizar uma frente de oposição que possa agir de forma eficaz?

BS. Possível é, e do meu ponto de vista, a eficácia que poderá ter é ela própria servir de base para uma transformação futura…

P. Transformar-se numa frente de oposição cívica, mais do que partidária?

BS. Sim. Num futuro qualquer, sim. As pessoas de bem, numa determinada sociedade, tem de especializar-se – porque é o que faz a diferença, devem especializar-se efectivamente, terem uma determinada carreira, não terem receio porque não têm cordas do passado a amarrá-los, não têm dívidas morais para com ninguém, e, depois, têm de tentar fazer o máximo que podem, contribuindo com o seu saber para influenciar o modo de vida e o modo de estar na sociedade, e, até, num último plano, para influenciar o modo de estar na política. Mas isto tem um limite, e o Presidente João Lourenço representa esse limite, se ele for, com todo o poder que tem, com toda a estrutura que tem, com todo o discurso que adoptou na campanha, se ele se mostrar incapaz de fazer verdadeiras reformas e de trazer à tona esta ética republica e de exaltar o patriotismo, não o que exclui e segrega, mas um patriotismo inclusivo, não exclusivo como foi apanágio do MPLA desde os tempos da guerrilha, se for incapaz disto, temos duas opções: desistir do país ou entrar na luta. Creio que as pessoas pensarão dessa forma. Essa frente, a ser feita, pode ser um protótipo para o que vai acontecer num futuro próximo, daqui a duas eleições.

P. O que é quer dizer com “ir à luta”?

BS. É uma luta por uma Angola melhor.

P. Mas que vai até onde?

BS. Temos várias formas de luta, mas esta seria para agir no plano institucional, no plano orgânico, político. Uma frente comum para mostrar a Angola e aos jovens angolanos que há uma alternativa fora dos percursos tradicionais. Pessoas que nunca estiveram na política, que não têm percurso político, sabem que é preciso fazer diferente para o país. E que cada um no seu sector sabe que o sistema não é melhor, seja no Justiça ou na Comunicação Social, e se essas pessoas comunicarem entre si, são capazes de criar um projecto viável para Angola tanto no plano da Comunicação Social como no da Justiça ou outro, e a partir daí, juntando projectos, fazer uma frente política, um poder político alternativo. E isto pode começar com as autarquias. O início do fim da hegemonia do MPLA começa quando fizermos eleições autárquicas. Este ano não teremos eleições, provavelmente elas acontecerão no próximo ano, até Maio, mas não estranhe a resistência, quem pensa e sabe o que o MPLA fez ao povo, sabe, claramente, que no dia a seguir às autárquicas, esse dia será o primeiro dia do fim da hegemonia política do MPLA.

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